Velha doença, novos desafios, artigo de Paulo Gadelha e Tania Araújo-Jorge
22 de setembro de 2009 - 06:17
“Apesar do quadro crítico, o centenário da descoberta da doença de Chagas, comemorado este ano, é também um momento de celebração dos avanços da ciência”
Paulo Gadelha é presidente da Fiocruz e Tania Araújo-Jorge é diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Artigo publicado no “Correio Brziliense”:
A velha doença do barbeiro, descrita como um dos problemas de Jeca Tatu na literatura brasileira, ainda nos desafia. Um século após sua descoberta, a doença de Chagas representa uma questão global de saúde pública: sem cura ou vacina, afeta cerca de 16 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, e exige estratégias de controle cada vez mais elaboradas.
São os indivíduos em sua faixa etária mais produtiva – dos 30 aos 60 anos – os mais atingidos. Assim, a doença de Chagas tem forte impacto na capacidade de trabalho e geração de renda. Um ciclo vicioso perverso, em que a pobreza é determinante social da doença e a doença gera mais pobreza. Apenas as diarreias infecciosas e a epidemia de Aids são mais impactantes que a doença de Chagas.
No Brasil, estima-se em 2 milhões o número de pacientes crônicos – 600 mil com complicações cardíacas ou digestivas que levam a óbito 5 mil pessoas por ano. Em valores absolutos, o número de brasileiros que morrem por doença de Chagas é similar ao dos que morrem por tuberculose e 10 vezes superior às mortes causadas por esquistossomose, malária, hanseníase ou leishmaniose.
Apesar desse quadro crítico, o centenário da descoberta da doença de Chagas, comemorado este ano, é também um momento de celebração dos avanços da ciência. Honrando a grandeza da descoberta de Carlos Chagas, o sucesso da estratégia de interrupção da transmissão da doença pelo seu principal vetor nas Américas é exemplo mundial. Em 2006, o Brasil foi certificado pela OMS por ter controlado a transmissão pelo Triatoma infestans, nosso barbeiro mais comum, em todos os estados do país.
Nos restam agora os desafios de dar sustentabilidade ao controle do vetor, prevenir a transmissão por outros insetos e mecanismos, como a via alimentar, redobrar a atenção sobre o impacto de instabilidades ambientais sobre o ciclo silvestre do vetor da doença, o que pode favorecer novas formas de transmissão, e garantir a atenção aos milhões de pacientes agudos e crônicos.
Não são poucos os desafios que nos cabem, mas a história do enfrentamento da doença nos ensina e inspira. Sua trajetória teve início em 1909, com a descoberta tripla de Carlos Chagas, grande cientista que deixou sua marca na Fiocruz e na ciência mundial – feito único na história da medicina por incluir todo o ciclo da doença: agente etiológico causador, inseto vetor e infecção humana. A descoberta prestigiou internacionalmente a ciência brasileira e, entre outros reconhecimentos acadêmicos nacionais e internacionais, Carlos Chagas foi duas vezes indicado ao Prêmio Nobel.
Um século após a descoberta da doença, permanecem grandes desafios. É consenso que para prevenir e identificar as formas agudas da infecção é necessário aprimorar os métodos de diagnóstico, testar a associação de medicamentos e conhecer mais profundamente a resposta dos pacientes aos protocolos de tratamento. Um desafio epidemiológico importante é a emergência da doença na Amazônia e a maior lacuna que permanece certamente diz respeito ao desenvolvimento de novos fármacos – atualmente há somente dois medicamentos disponíveis para o tratamento da doença.
Considerada tradicionalmente uma doença relacionada à pobreza, endêmica nas Américas, a doença de Chagas passa atualmente por um processo de alteração de seus padrões epidemiológicos clássicos. Casos crônicos e agudos, importados e autóctones, têm sido registrados em todo o mundo, inclusive nos países ricos, que há até pouco tempo não compartilhavam desse problema.
A complexa transição epidemiológica, da qual emerge a abrangência global da doença de Chagas, sinaliza a necessidade do esforço integrado de diversos países para seu enfrentamento. Nesse novo cenário, desempenhar com responsabilidade e comprometimento o papel do Brasil é tão impactante como foram os esforços de Chagas e de seus colaboradores na primeira década do século 20.
(Correio Braziliense, 11/9)
Fonte: Jornal da Ciência 3846, 11 de setembro de 2009.