Sem verba, Brasil vira sócio de reator de fusão nuclear
18 de fevereiro de 2009 - 05:24
País fornecerá cientistas ao experimento Iter, mas não terá direito a royalties
Rafael Garcia escreve para a “Folha de SP”:
O físicos brasileiros que estudam fusão nuclear parecem finalmente ter conseguido fundir seu conhecimento e gerar força para que essa linha de pesquisa tome rumo no Brasil. Após uma longa negociação, um acordo permitirá ao país participar do maior experimento de fusão do mundo, e a partir deste ano brasileiros concentrarão seus esforços num novo laboratório, na cidade de Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba.
Dentro de alguns meses, um acordo formal deve ser assinado para que o país possa enviar pesquisadores ao Iter -protótipo de reator gigante que está sendo construído em Cadarache (França), numa colaboração entre diversos países. O Brasil, porém não vai injetar verba no projeto diretamente.
“Vamos ser colaboradores não-cotistas. Participaremos do projeto, mas não teremos direito a royalties das tecnologias que serão geradas lá”, explicou à Folha Odair Gonçalves, presidente da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear). O dinheiro gasto no início da colaboração, diz, será apenas com bolsas de cientistas e cobertura de infraestrutura para comunicação e viagens.
A fusão nuclear é hoje o Santo Graal da física aplicada. Ao imitar o modo de produção de energia do Sol, ela oferece a possibilidade de gerar força sem emitir gases-estufa e usando combustível barato -hidrogênio, o elemento mais abundante do Universo, que pode ser extraído da água. Se um dia se tornar viável, quase não vai gerar lixo radioativo, diferentemente de sua prima “suja”, a fissão, que move as usinas nucleares atuais.
Como o Brasil possui uma matriz energética variada e relativamente limpa, os físicos avaliaram que não vale a pena gastar pesado com pesquisas de fusão, ainda. Cotistas do Iter estão entrando com verbas na escala de centenas de milhares de dólares porque alguns deles, como a China, têm um futuro energético bem mais sombrio.
Se o Brasil tivesse decidido ficar totalmente fora do Iter, porém, poderia vir a se arrepender no futuro, diz Gonçalves. Caso a fusão nuclear se mostre viável tecnologicamente e economicamente -algo ainda incerto-, o Brasil se arriscaria a ter de pegar o bonde andando depois, sem ter experiência acumulada na área. A solução encontrada foi a de fornecer apenas cientistas ao projeto, sem abrir a carteira.
Fusão em Cachoeira
“Apesar de não ter abrigado nenhum grande experimento, o Brasil tem atuado na pesquisa de fusão com bastante reconhecimento internacional”, diz Ricardo Galvão, diretor do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), no Rio.
Hoje, o país possui dois tokamaks -protótipos de reatores experimentais de fusão. Um deles fica no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em São José dos Campos, e outro no no Instituto de Física da USP. Galvão vem sempre a São Paulo para participar de trabalhos práticos.
Com o tamanho de um pneu de trator, porém, a câmara do tokamak da USP parece uma maquete comparada à do Iter, que tem as dimensões da cúpula de uma catedral. Mas o pequeno experimento tem seu valor. “Uma publicação feita para reunir as bases físicas necessárias ao projeto do Iter cita um trabalho que foi feito nesta máquina aqui”, diz Galvão, abrindo a porta do galpão que abriga o protótipo da USP.
A entrevista que o físico concedeu à Folha sobre a energia que iluminará o futuro ironicamente começou durante um blecaute que havia atingido o campus da USP, na última quinta-feira. Um sistema de segurança havia desconectado o fornecimento de luz do laboratório, e Galvão desceu ao porão para religá-lo manualmente após o fim do apagão.
Os tokamaks do Inpe e da USP possivelmente serão levados ao novo laboratório de Cacheira Paulista, que pretende concentrar os esforços do país para pesquisa em fusão. O objetivo é que o conhecimento produzido lá seja aplicado no Iter e em futuros reatores.
Aposta no escuro
Se o fornecimento de luz em São Paulo não é perfeito hoje, também não faltam preocupações para os pesquisadores que veem na fusão o futuro da geração de energia. O próprio Iter, que ainda é um experimento, já enfrenta dificuldades.
“Os materiais dentro do Iter terão de suportar um enorme bombardeamento de nêutrons e também enorme calor”, explica Neil Calder, porta-voz do projeto em Cadarache. “A temperatura não será problema. Já para os nêutrons, nós temos materiais que podem resistir a eles, mas a questão é saber por quanto tempo.”
Entre as peças do reator que mais preocupam os cientistas estão os ladrilhos especiais que revestem a câmara onde ocorre a fusão e um dispositivo chamado diversor, que coleta a maior parte do calor gerado no reator. “O problema crucial está mesmo nos materiais”, pondera Galvão. “Na minha opinião, não se pode afirmar que vamos ter um reator a fusão antes de o teste de materiais no Iter ser satisfatório.”
Para o físico do CBPF, se a questão de material for resolvida, “não há duvidas” de que vai ser possível produzir energia por fusão numa usina. “O problema então passa a ser a questão econômica. Não temos como saber ainda quanto vai ser necessário de investimento tecnológico até lá, nem quanto vai custar o quilowatt-hora.”
E o Iter, claro, não está imune à crise econômica mundial. A estimativa atual de orçamento do projeto – 10 bilhões- foi feita em 2001, e as inúmeras turbulências financeiras desde então forçaram os cientistas a fazer uma revisão. O novo número será divulgado em junho. Mesmo que tudo dê certo, a fusão ainda vai demorar a entrar na matriz elétrica. “De modo otimista, pode-se ver o início de usinas de fusão comerciais em 2040 ou 2045”, diz Calder.
Iter deixa sigla de lado para afastar estigma atômico
Sem saber qual será o futuro da pesquisa em fusão nuclear, os cientistas do Iter tampouco decidiram bem como fazer o marketing do projeto, que precisa convencer a opinião pública a aceitar o gasto de grandes volumes de verbas estatais.
A significado inicial do nome -sigla de Reator Termonuclear Experimental Internacional- foi abandonado em 2006. “A palavra “reator”, soa muito como uma grande máquina de fissão nuclear, o que não é o caso”, diz Neil Calder, porta-voz do projeto. O nome Iter, porém, ficou. “Ele tem outro significado. Quer dizer “caminho” em latim.” Para se referir à máquina, Calder usa a palavra “usina”.
O objetivo é afastar o estigma dos atuais reatores nucleares, já que os rejeitos gerados pela nova tecnologia serão bem menos nocivos. Mas “usina”, ao que parece, não agrada a todos.
“O Iter não vai gerar eletricidade”, diz Galvão, do CBPF. E, por outro motivo, ele também não se refere ao projeto como um reator. “É um protótipo.”
Sem pressa, físicos terão até 2018, ano de inauguração, para decidir como chamar o Iter.
(Folha de SP, 15/2)
Fonte: Jornal da Ciência 3703, 16 de fevereiro de 2009.