Política contra Aids divide pais do HIV
15 de outubro de 2008 - 11:41
Franceses que ganharam o Nobel de Medicina deste ano pela descoberta do vírus discordam sobre quebra de patentes
Os únicos pontos em comum entre os dois cientistas franceses vencedores do Prêmio Nobel de Medicina deste ano parecem ser sua amizade e o combate incansável ao vírus da Aids.
Françoise Barré-Sinoussi, 61, e Luc Montagnier, 76, que isolaram o HIV juntamente com Jean-Claude Chermann (excluído do Nobel) em 1983, divergem em pontos sensíveis sobre o tratamento e a política de combate à Aids, como a delicada questão da quebra de patentes -ela é a favor, ele é contra- ou o prazo para a descoberta de uma vacina terapêutica. Na última quinta-feira, os dois falaram à Folha.
“Decisão de quebrar patente é corajosa”
Leia a entrevista de Françoise Barré-Sinoussi:
– A sra. falou que foi ingenuidade achar que teríamos uma vacina contra o HIV logo. Por quê?
Há muitos problemas. Um deles é a grande diversidade do vírus da Aids. Em um mesmo corpo humano contaminado há uma grande variedade de vírus ligeiramente diferentes entre si. Há também o fato de que esse vírus infecta muito rápido as células que existem no corpo para nos defender da infecção. O vírus é mais rápido que a resposta imune. Ele penetra na célula e, além de se multiplicar, desregula suas funções. Pesquisas mais recentes também indicam que, nas células apresentadoras de antígenos [que matam as células infectadas], o vírus da Aids também afeta o que chamamos de imunidade natural, que é a primeira resposta do corpo quando, por exemplo, cortamos um dedo. Tudo isso agrava a situação para descobrir uma vacina. Acreditamos que [usar] uma parte do vírus [em vacinas, como se tenta fazer hoje] possa provocar não uma resposta protetora, mas sim uma resposta deletéria, que vai fazer o inverso do que queremos, com o risco de provocar uma imunodeficiência. Então, há todo um equilíbrio que ainda conhecemos mal entre as respostas benéficas, as respostas destrutivas e os sinais que devemos induzir precocemente para fazer pender esse equilíbrio em direção à resposta protetora. Enquanto não tivermos compreendido esses mecanismos, teremos muitas dificuldades em desenvolver novas estratégias de vacina.
– Luc Montagnier disse que acredita em uma vacina terapêutica em dois ou três anos. A sra. também crê nisso?
Não vou falar em prazos, nem para a vacina preventiva, nem para a terapêutica. Em compensação, devemos efetivamente buscar uma vacina terapêutica. Essas vacinas vão impedir que os portadores do vírus desenvolvam a doença. E isso já seria um grande progresso. Hoje, temos em nossas mãos um certo número de sistemas de estudos. Por exemplo, existe essa pequena proporção de doentes, menos de 1%, que são portadores do vírus, mas controlam a carga viral e que, sem nenhum medicamento, não desenvolvem a doença. Parece que esses pacientes têm uma resposta TCD8+ [tipo de célula de defesa do corpo] particular, mas há ainda muito a aprender, porque nem todos esses pacientes têm a mesma resposta. Além disso, também tentamos identificar por que alguns pacientes têm uma boa resposta TCD8+ e outros não. Começamos a saber que há fatores genéticos e ligados à imunidade natural, que conhecemos ainda mal. Então, ainda é necessário muita pesquisa para compreender por que essas pessoas não desenvolvem a doença. Há também o modelo do macaco da África, que não desenvolve a doença, apesar de ser portador do vírus. O meu laboratório e outros realizam pesquisas para tentar descobrir a diferença entre o modelo patogênico e os outros que não desenvolvem a doença.
– E não podemos fazer previsões sobre o prazo necessário para a descoberta de uma vacina terapêutica ? Será mais rápido que para uma vacina preventiva ?
Não, na pesquisa científica é muito difícil fixar datas. Durante muitos anos, falamos que uma vacina seria possível em 5 ou 10 anos e faz mais de 20 anos que iniciamos as pesquisas e não conseguimos desenvolver nenhuma vacina. Se você tivesse me perguntado, em dezembro de 1982, quando eu ira descobrir o agente responsável pela Aids, eu diria que não tinha a menor idéia.
Um mês depois conseguimos isolar o vírus.
– A sra. disse que o Brasil deu o exemplo no combate à Aids. Mas muitos vêem a distribuição de genéricos como ameaça à propriedade intelectual. Robert Gallo diz que isso desestimula a inovação.
Eu, pessoalmente, considero um exemplo as decisões que foram tomadas rapidamente no Brasil para o acesso aos medicamentos e para a produção de genéricos. É verdade que os genéricos causam problemas à propriedade intelectual. Mas há também o lado bom. A produção de genéricos, além das negociações e acordos firmados com as farmacêuticas, forçou as empresas a baixarem seus preços a tal ponto que, hoje, certos remédios clássicos são mais baratos do que os genéricos.
– O Brasil e a Tailândia agiram certo ao ameaçar e quebrar patentes de antirretrovirais? A sra. é a favor da quebra de patentes?
Em casos particulares como esses, onde há urgência para a saúde da população, acho que é corajoso tomar esse tipo de decisão.
– Alguns estudos têm mostrado que a circuncisão é eficaz para prevenir a doença na África. A sra. recomendaria isso?
A circuncisão não deve ser utilizada como o único método de prevenção. A própria Organização Mundial da Saúde preconiza diferentes métodos e, entre eles, a circuncisão. Não conheço ninguém que tenha recomendado a circuncisão como único método. A utilização de preservativos deve ser recomendada, mesmo em pacientes circuncidados.
– Então, a sra. é a favor da circuncisão associada a outros métodos de prevenção?
Sim, porque há resultados científicos hoje que, certamente, serão confirmados em grande escala. Vários estudos indicam que a circuncisão pode levar a uma diminuição do risco de mais de 50%.
“Se não há patentes, matamos a pesquisa”
Leia a entrevista de Luc Montagnier:
– Hoje, poucos arriscam falar em uma vacina contra a Aids. O que tem acontecido?
Era necessário explorar todas as possibilidades e começar por procedimentos mais clássicos, que já havíamos utilizado, como as vacinas que funcionam para outras doenças virais. Mas, a partir de um determinado ponto, eu mesmo disse que era inútil continuar nesse caminho. Não podemos seguir a estratégia do vírus. Minha estratégia é começar por testes clínicos que permitam uma resposta rápida. Se fizermos uma vacina preventiva, estaremos muito mal armados. O modelo do macaco, por exemplo, é uma catástrofe, porque os resultados não podem ser aplicados ao homem. Então, para uma resposta rápida, não se deve buscar uma vacina preventiva, mas sim uma vacina terapêutica. O objetivo é que o doente possa, então, suspender os antirretrovirais.
– O sr. é bastante otimista com relação ao prazo para a descoberta de uma vacina terapêutica, entre dois e três anos…
Sim, esses resultados podem ser obtidos facilmente. Há voluntários que estão prontos. O que queremos é erradicar o vírus e não somente testar uma vacina por testar. Ao invés de tomarem os medicamentos por décadas, eles serão submetidos a uma terapia curta e, em seguida, será a vacinação que protegerá as pessoas.
– O Brasil é citado como um exemplo no combate à Aids. Mas muitos vêem os genéricos como ameaça à propriedade intelectual. Qual é a posição do sr.?
O sistema de propriedade intelectual é feito para que as empresas possam usar parte do dinheiro arrecadado com as patentes para financiar as pesquisas. Isso é essencial para o vírus da Aids, que varia o tempo todo e que precisa de novas drogas.
– Mas, para os países pobres, há o problema dos preços.
As indústrias farmacêuticas propõem, hoje, medicamentos a preços bastantes baixos para os países pobres. Os genéricos também estão no mercado, mas, evidentemente, há acordos que limitam o campo de venda desses medicamentos. Que o Brasil produza genéricos para os brasileiros está muito bem. Mas, se eles entrarem em competição [com as drogas patenteadas], aí é outro problema. Mas isso é pouco provável, porque os genéricos são feitos a partir de produtos que não estão mais cobertos por patentes. E a indústria farmacêutica sai na frente com novos inibidores que podem ser vendidos a preços bem mais altos, pois não terão os genéricos como concorrentes.
– Nesse caso, o sr. seria a favor da quebra das patentes?
No caso da Aids, com a ajuda internacional, muitos medicamentos, mesmo os patenteados, são praticamente dados aos pacientes. Há tratamentos gratuitos em vários países africanos. O problema é identificar quem vai ter acesso a esses tratamentos. Há muitos que escondem a doença ou que não querem saber se estão contaminados e que somente recorrem ao tratamento quando estão muito doentes, normalmente muito tarde. O que tem de ser feito é encontrar uma maneira de desmistificar a Aids, mostrar que o fato de ser portador do vírus não deve acarretar problemas no trabalho ou na família.
– O sr. não é, então, a favor da quebra de patentes?
Não. Veja o exemplo da França. Aqui, nós respeitamos as patentes, mas houve uma pressão enorme de vários governos para que fossem reduzidos os preços dos medicamentos. Hoje, os remédios aqui são os mais baratos da Europa. Resultado: não há quase mais nenhuma indústria farmacêutica na França produzindo novas drogas. Se não mantivermos o sistema de patentes, de propriedade intelectual, vamos matar a pesquisa.
– Alguns estudos mostram que a circuncisão é uma forma eficiente de prevenir a doença na África. O sr. a recomendaria?
Não. Se o homem tem uma higiene normal, se ele se lava antes e depois do ato sexual, não há necessidade de circuncisão. É o caso dos muçulmanos. Há menos casos de Aids nos países muçulmanos, que seguem normas de higiene.
– O sr. disse que em muitos países africanos os remédios antirretrovirais são dados quase de graça. Mas muita gente, principalmente ONGs, afirma o contrário.
O problema é por quanto tempo vamos poder manter os medicamentos gratuitos, já que o tratamento dura a vida inteira. Normalmente, as pessoas podem pagar durante um ou dois anos, mas não durante toda a vida. Por isso, um tratamento muito longo na África é impossível.
– Robert Gallo foi acusado de ter roubado as suas amostras. O sr. acredita nisso?
Robert Gallo não roubou nada do nosso laboratório, pois nós mesmos lhe enviamos uma amostra. Acho que ele não percebeu que houve contaminação de seu laboratório, porque o vírus que enviamos a Gallo se multiplica mais rapidamente do que os outros. Nós discutimos sobre isso na época, escrevemos vários artigos juntos. E eu lamento que Gallo não tenha, também, recebido o Nobel, porque ele e seu grupo tiveram um papel importante para mostrar a relação entre o vírus e a Aids. Fomos nós que isolamos o vírus, mas para demonstrar a relação entre ele e a doença acho que os dois laboratórios deram uma grande contribuição. Foi por isso que ele foi chamado de “co-descobridor do vírus”, e eu não nego essa apelação.
(Folha de SP, 13/10)
Fonte: Jornal da Ciência 3618, 13 de outubro de 2008