O novo cérebro humano
26 de fevereiro de 2009 - 05:25
Cientistas brasileiros derrubam mitos arraigados sobre a composição do órgão
Roberta Jansen escreve para “O Globo”:
Um trabalho apresentado esta semana por cientistas brasileiros derruba, definitivamente, três grandes mitos relacionados ao cérebro humano, perpetuados há décadas pelos mais renomados especialistas do mundo inteiro.
Para começar, o cérebro não tem 100 bilhões de neurônios — um “número mágico” que ninguém consegue rastrear de onde saiu —, mas sim 86 bilhões. Em segundo lugar, não apenas 10% das células do cérebro são neurônios, mas 50% delas. Por último, e talvez mais importante, o homem é quem apresenta o maior número de neurônios dentre os primatas sim, mas seu cérebro está longe de ser excepcional em relação ao de seus parentes mais próximos, os macacos.
O estudo a ser publicado na “Journal of Comparative Neurology” é assinado por Frederico Azevedo, Roberto Lent e Suzana HerculanoHouzel, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, dentre outros pesquisadores do Banco de Cérebros da USP. O trabalho mostra, pela primeira vez, o número oficial de neurônios no cérebro humano, calculado em 86 bilhões. Para alcançar tal feito, os cientistas desenvolveram uma tecnologia que permitisse contar, ou, ao menos, estimar com grande precisão, a cifra.
— Como a distribuição dessas células no cérebro é muito heterogênea, era difícil chegar a um cálculo por amostragem. Precisávamos superar isso — contou Roberto Lent, diretor do instituto.
Sopa de células para contar neurônios
Suzana Herculano-Houzel foi quem conseguiu superar o obstáculo, criando uma solução tão simples quanto engenhosa.
— Desenvolvemos um método de contar núcleos, não células — explicou. — Usando os tecidos do cérebro e os banhando em detergente, conseguimos destruir as membranas celulares e obtivemos, em laboratório, uma sopa de cérebro, um líquido com núcleos livres. Claro que não contamos um por um, mas fizemos o cálculo de quantos núcleos estavam presentes por mililitro e chegamos a uma estimativa, uma vez que a solução, diferentemente do cérebro, era homogênea.
A ideia de tentar buscar o número mais exato possível começou a povoar a mente dos cientistas quando Lent publicou o livro “Cem bilhões de neurônios”.
— Suzana começou a me perturbar, perguntando de onde tinha saído esse número mágico que todos repetiam, que aparecia em todos os livros — relembrou o cientista. — Ela começou a pesquisar e acabou concluindo que a fonte original não existia. Agora veja a situação delicada em que me encontro: vou ter que mudar o título do meu livro.
Com base nesta conta, um outro mito bastante disseminado, a de que os homens teriam até 16% mais neurônios do que as mulheres, deverá ser rapidamente revisto. Este percentual foi alcançado com base num cálculo por amostragem que, agora, se mostrou impreciso. O grupo brasileiro se dedica, agora, a fazer esta conta.
Outra ideia profundamente arraigada entre os que estudam o cérebro humano é de que ele seria composto de um neurônio para cada dez glias — células responsáveis, basicamente, pela sustentação das estrelas maiores, os neurônios.
Esta cifra também aparece em vários livros técnicos e em estudos de toda parte do mundo, sem que a sua fonte original tampouco possa ser rastreada. O fato é que, pelas contas dos brasileiros, são 84 bilhões de glias para 86 bilhões de neurônios. Desta proporção de 1 para 10, lembra Suzana, pode ter saído um outro mito extremamente arraigado e completamente falso: o de que usamos apenas 10% da capacidade de nosso cérebro.
— A primeira implicação é tentar entender essa relação funcional entre neurônios e glias, como se sustentam metabolicamente — explicou Suzana. — Com essa descoberta, podemos ter que rever outros conceitos também, como a gênese da epilepsia, que pode não ser exclusivamente neuronal, por exemplo. Sobretudo, eu acho que o estudo mostra como mesmo os números considerados totalmente verdadeiros devem ser revistos periodicamente.
Um primata como qualquer outro
Mas talvez a maior implicação do estudo dos neurocientistas tenha a ver com a posição do homem entre os primatas.
O número total de neurônios encontrados no cérebro do homem é superior ao dos demais primatas — orangotangos e gorilas teriam, em média, 32 bilhões de neurônios — o que pode explicar por que não são eles, neste momento, a estudar o cérebro humano.
Entretanto, aplicando o número total de neurônios encontrados à função de escala que descreve o crescimento evolutivo do cérebro dos primatas, os especialistas descobriram que ele é totalmente coerente com os demais.
— Isso significa que o cérebro humano não é especial, não é um ponto fora da curva, mas que tem o número de neurônios e células gliais que seria de se esperar para um primata com um cérebro dessa dimensão. O homem, nesse sentido, é um primata como outro qualquer, seguindo a evolução. Não precisa de Deus para ter sido criado — afirmou Lent.
As ideias mais disseminadas
Os cientistas não sabem explicar por que, mas há algumas ideias extremamente arraigadas no que diz respeito ao cérebro. Algumas delas não encontram respaldo em estudos, mas, ainda assim, são disseminadas em publicações sérias. Parte delas foi derrubada pelo novo estudo.
Cem bilhões de neurônios: Ninguém sabe de onde surgiu o chamado “número mágico”. Especialistas não conseguiram chegar à origem do número. O novo estudo, o primeiro a chegar a uma cifra oficial, revela que o cérebro humano tem, na verdade, 86 bilhões de neurônios.
Mulheres têm menos neurônios: Estudo publicado há quase dez anos na “Journal of Neuroscience” mostrou que os homens teriam até 5 bilhões de neurônios a mais do que as mulheres. A conta, na ocasião, foi feita por amostragem de apenas uma região do cérebro e os cientistas brasileiros acham que ela pode estar errada. Nova contagem, agora com a nova tecnologia, está em andamento.
A proporção de neurônios e glias: Acreditava-se que havia dez células gliais (responsáveis pela sustentação) para cada neurônio. O novo estudo mostrou que a proporção é de praticamente um para um.
(O Globo, 18/2)
Fonte: Jornal da Ciência 3705, 18 de fevereiro de 2009.