Governo estuda criar agência nuclear
11 de setembro de 2008 - 10:06
Respondendo a pressão internacional, nova versão do programa nuclear brasileiro prevê órgão fiscalizador independente
Marcelo Leite escreve para a “Folha de SP”:
Um comitê de 11 ministros se reunirá em meados de outubro para decidir a nova feição do programa nuclear brasileiro. A trajetória do salto projetado com a construção de Angra 3 já foi apresentada a Lula: criar uma agência fiscalizadora separada da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) e atingir auto-suficiência em combustível nuclear até 2014.
A proposta de criação da agência do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro, coordenado pela Casa Civil, responde a uma demanda internacional. Acusa-se o Brasil de não dar independência a seu órgão fiscalizador (CNEN; em geral, pronuncia-se “quiném”), pois este se envolve também na execução do programa. Por exemplo, na operação de reatores de pesquisa.
O assunto é sensível porque a mesma tecnologia usada no enriquecimento do urânio para usinas termelétricas nucleares e o rejeito nelas produzido podem em princípio alimentar um projeto militar.
Enriquecimento é o aumento da concentração do urânio-235, versão físsil do elemento, que pode ser usado nas reações em cadeia. Para usinas, basta enriquecer a 3,5%. Aplicações bélicas exigem 90%, concentração obtida em “cascatas” de centrífugas que separam o U-235 em sucessivas passagens de um gás contendo urânio.
O Brasil interrompeu oficialmente seu programa nuclear paralelo (militar) em 1990. Mas o país ainda sofre pressões.
No final de 2004, houve muito barulho em torno de visita de inspeção da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) à fábrica de urânio enriquecido das INB (Indústrias Nucleares do Brasil) em Resende (RJ). A CNEN negociou por meses as bases da inspeção, para impedir a visão de partes inovadoras das centrífugas.
A fábrica terminou aprovada. Se a agência independente em estudo já existisse, porém, o órgão nacional de fiscalização e o operador do enriquecimento não estariam sob o mesmo teto.
Para o presidente da CNEN, Odair Dias Gonçalves, a questão da independência é formal: se os órgãos fiscalizador e promotor não partilharem um prédio, estarão no mesmo governo. É, também, uma questão de evolução, pois noutros países as agências reguladoras só se tornaram independentes depois que seus programas nucleares atingiram grande porte.
“Acho uma falácia o argumento da independência, mas isso não significa que seja contra”, afirma Gonçalves. “É natural que se crie uma agência separada, dependendo do tamanho do programa nuclear.”
A agência nasceria com o desmembramento das áreas da CNEN que cuidam de radioproteção, segurança e salvaguardas (cláusulas de acordos internacionais). A separação ocorreria em um ou dois anos, dependendo de ser ou não necessária emenda constitucional, o que ainda está em exame.
Auto-suficiência
O governo Lula optou por deslanchar o programa nuclear brasileiro. Mais que duplicou o orçamento da CNEN entre 2003 e 2008, de R$ 70 milhões para R$ 150 milhões. Outros R$ 251 milhões estão orçados neste ano para pessoal, cerca de 2.700 funcionários.
O Planalto já decidiu retomar Angra 3, no litoral do Rio de Janeiro, paralisada em 1984. Incluiu no planejamento do setor elétrico para 2030 outras 4 a 8 usinas fora de Angra. A proposta do comitê é construir uma central no Nordeste e outra no Sudeste, com 2 a 3 usinas cada uma.
Também está nos planos dar impulso à construção de um submarino com propulsão nuclear. Foi num centro experimental da Marinha em Aramar, Iperó (SP), que se desenvolveram as centrífugas hoje usadas nas INB, em Resende (RJ).
Existe a proposta de instalar também em Aramar uma unidade-piloto de transformação do minério de urânio (“yellow cake”) no gás hexafluoreto de urânio (UF6) que alimenta as centrífugas. O processo é realizado hoje no Canadá. Já o enriquecimento do combustível das usinas ocorre na Europa, pelo consórcio Urenco.
O plano é obter auto-suficiência na produção de combustível físsil para todos os reatores nacionais, de pesquisa ou em usinas, até 2014. O Brasil, com a sexta maior reserva de urânio, é um dos três únicos países a ter jazidas suficientes do minério e também a tecnologia para enriquecê-lo. Os outros são EUA e Rússia.
Essa é a situação hoje, com 30% do território prospectado até a profundidade de 100 metros. Segundo a Cnen, há a expectativa de que o país abrigue na realidade a segunda maior reserva do mundo. De reservas com evidências, porém, há 500 mil toneladas -o bastante para 250 anos de operação das seis usinas previstas para 2025.
Para dar esse passo na mudança de escala do programa nuclear brasileiro, está nos planos também mudar de patamar no gerenciamento dos rejeitos nucleares produzidos pelas usinas. Em especial, o combustível usado (de alta atividade). Para o comitê, isso deve ficar a cargo de uma nova empresa estatal.
Depósito de lixo nuclear das usinas deve ser “intermediário”
Em 23 de julho, o Ibama expediu a licença prévia nº 279 impondo 60 condições para o funcionamento da usina Angra 3, cuja construção o governo federal quer terminar em 2014. A exigência que mais chamou a atenção foi um depósito final para rejeitos nucleares.
A determinação abriu um conflito de competências entre agências federais. De um lado, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). De outro, a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear).
O Ibama concedeu a licença para a empresa Eletronuclear, operadora da usina, que só tem responsabilidade sobre depósitos iniciais (veja quadro nesta página). A deposição intermediária e final de todos os rejeitos é da alçada da CNEN.
“Não darei licença de operação para Angra 3 sem que esteja escolhido, definido e em início de construção o depósito de rejeitos”, afirmou no último dia 17 Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente, ao qual se vincula o Ibama.
Na “condicionante 2.18” da licença nº 279 do Ibama, o vocabulário é outro: “Apresentar proposta e iniciar a execução do projeto aprovado pelo órgão ambiental para disposição final dos rejeitos radioativos de alta atividade antes do início da operação da Unidade 3”.
Para o setor nuclear, “execução do projeto” não quer dizer construção. Pelo calendário do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro, que conta com a participação de Minc e mais dez ministros, em 2014 será de fato iniciado o projeto. A construção, porém, começa só em 2019, com conclusão em 2026.
CNEN e Eletronuclear teriam antes de passar do que hoje é um conceito para uma proposta concreta, o que ocorreria no ano que vem. Depois, até 2013, construir e testar um protótipo. Seriam 9 ou 12 das células da colméia de concreto (veja gráfico ao lado), que precisa resistir 500 anos, inclusive a terremotos e inundações. Só em 2017 seria definido o local.
Há alguma confusão ainda sobre o status do depósito. Para rejeitos de alta atividade, só está em pauta um “depósito intermediário de longo prazo” (Dilp, no jargão interno da Eletronuclear). Nada de “final”, portanto. Num depósito intermediário, os elementos combustíveis já empregados não ficam selados e poderiam ainda ser reprocessados.
O argumento em favor de construir só um depósito intermediário para rejeitos de alta atividade, e não final, é que ainda há 40% de energia aproveitável neles. Selá-los privaria as próximas gerações desse potencial. Na área nuclear, evitam-se os termos “rejeito” e “lixo” para qualificá-los.
Contra-argumento: o combustível usado também pode ser utilizado para obter plutônio, matéria-prima para armamento nuclear. Odair Gonçalves, da CNEN, assinala que o programa nuclear brasileiro não tem escala nem razões econômicas para fazer reprocessamento, hoje. Nem competência tecnológica para separar o plutônio apropriado para aplicações bélicas.
“A gente precisa de um programa nuclear consistente, não é com uma ou duas usinas funcionando que se vai começar a pensar nessa tecnologia.”
Falta escala ao projeto nuclear brasileiro
A falta de escala do programa nuclear brasileiro é apresentada como justificativa pela CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) para explicar a inexistência de um projeto acabado de depósito de longo prazo para rejeitos de alta atividade.
E também para não se ter iniciado a construção de um depósito final para os rejeitos de baixa e média atividade, que deve sair em 2018.
Esse segundo tipo de depósito abrigaria o material de consumo com algum traço de material radiativo incorporado na operação e na manutenção das usinas nucleares, assim como rejeitos médicos e industriais. O chamado “Repositório Nacional”, cuja construção tem início marcado para 2014, seria similar ao de Abadia de Goiás, onde estão guardados os rejeitos do acidente com césio, em Goiânia, em 1987.
Suécia e Finlândia são os únicos países que decidiram desfazer-se em definitivo do combustível nuclear usado, selando-o debaixo da terra e de rochas. Os EUA gastaram décadas e bilhões discutindo e licenciando o depósito final de Yucca Mountain (Nevada), mas ele ainda não entrou em operação.
No Brasil, o material de alta atividade continuará a ser mantido no interior de cada usina da central de Angra, em piscinas -onde de resto precisa ser mantido por no mínimo dez anos, para resfriamento. Uma piscina externa terá de ser construída até 2022, quando se esgotam as capacidades dos reservatórios de Angra 1 e 2.
Para a CNEN, as piscinas são inteiramente seguras e podem armazenar os elementos usados por toda a vida útil da central, que pode alcançar 60 anos. “Como Angra 3 começa a operar em 2015, em princípio só vamos ter problemas com o local em 2075”, afirma Odair Dias Gonçalves, da CNEN.
O presidente da comissão descarta as preocupações com a elevação do nível do mar, por conta do aquecimento global. Mesmo se houver um tsunami, assegura, não entraria água nas piscinas, que são “absolutamente isoladas do ambiente”. As paredes têm dois metros de espessura.
“Não estávamos fazendo um depósito de longo prazo porque não havia a previsão do programa nuclear. Mas isso não significa que estávamos parados. Seria irresponsável. Não é por causa da pressão do Ibama que nós começamos a fazer alguma coisa”, diz Gonçalves.
(Folha de SP, 2/9)
Fonte: Jornal da Ciência 3589, 02 de setembro de 2008.