Entre a ciência e o mercado, artigo de Chico D’Angelo

13 de novembro de 2008 - 09:57

“É preciso mais pesquisas para eliminar dúvidas sobre a vacinação contra o HPV”

Chico D’Angelo é deputado federal (PT-RJ). Artigo publicado em “O Globo”:

Recentemente, foram divulgados os nomes dos três ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina de 2008. Entre eles, Harald zur Hausen, médico do Centro de Pesquisa do Câncer de Heidelberg, descobridor da vinculação entre a infecção pelo Papiloma Vírus Humano (HPV) e o desenvolvimento do câncer do colo do útero, o segundo mais comum entre as mulheres.

Em 1984, ele isolou os tipos 16 e 18 do HPV, que demonstraram ser os mais prevalentes entre aqueles com potencial de produzir câncer.

Em agosto de 2006, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou para comercialização no país a primeira das duas vacinas capazes de prevenir infecções por esses dois tipos de HPV, desde que utilizadas em mulheres que jamais tenham tido contato com o vírus, isto é, antes da iniciação sexual.

A partir daí, desencadeou-se uma seqüência de manifestações favoráveis à sua imediata utilização pela população feminina brasileira, valendo-se até da ameaça simplista de que o HPV mata! Transmitido por via sexual, esse vírus é quase universal na população humana, e sua infecção costuma transcorrer sem sintomas e regredir espontaneamente, sem tratamento, na imensa maioria dos casos.

Quem mata é o câncer do colo do útero, apesar de ser uma doença passível de prevenção e, caso essa não ocorra, com uma evolução que oferece diversas oportunidades de intervenção, a partir do tratamento das suas lesões iniciais, que podem ser rapidamente curadas em tratamento ambulatorial.

Não há dúvida sobre o magnífico avanço científico representado pelas novas vacinas, mas até que possam ser incorporadas a uma política de saúde pública, um grande número de questões ainda precisa ser adequadamente respondido.

Por exemplo, será que as jovens vacinadas poderiam ser induzidas a descuidar da necessidade de sexo seguro e se tornarem mais vulneráveis a outras doenças? Será que a eliminação desses dois tipos predominantes permitirá o crescimento de outros tipos até então inibidos? Quais as conseqüências de longo prazo da vacinação? Haverá efeitos colaterias graves? Haverá necessidade de dose de reforço? Com que regularidade? Qual a possibilidade de financiamento de um procedimento cuja aplicação de uma única dose (são preconizadas três), somente em meninas de 11 anos de idade, significaria 2,3 vezes o custo total do nosso bem-sucedido Programa Nacional de Imunização?

Em editorial (20/8), o jornal “The New York Times” alertou para a lacuna ainda existente entre as evidências científicas e a possibilidade de ampla utilização das vacinas. Principalmente, preocupa-se com a intensa pressão dos fabricantes, por exemplo, por meio do treinamento e elevada remuneração de médicos formadores de opinião para atuarem em favor de seus produtos.

Vinte e quatro anos após a descoberta que viria possibilitar o desenvolvimento das vacinas contra o HPV — mas apenas pouquíssimo tempo após a sua comercialização —, a concessão de um Nobel de Medicina impõe uma reflexão crítica sobre as relações entre ciência e mercado.

Impõe também — e sobretudo — que as autoridades sanitárias organizem uma pauta objetiva de pesquisas capazes de dar respostas seguras para as questões que ainda impedem os organismos internacionais de recomendar a vacinação contra o HPV como estratégia de controle do câncer do colo do útero.
(O Globo, 7/11)

Fonte: Jornal da Ciência 3637, 07 de novembro de 2008.