Diversidade da Calha Norte surpreende biólogos no PA

13 de novembro de 2008 - 10:24

Expedição no noroeste do Estado derruba mito de que região é mata homogênea; em plena floresta, grupo já identificou uma espécie nova de cobra-cega e um tipo de avenca que não era registrado desde o século 18

Rafael Garcia escreve para a “Folha de SP”:

A maior série de expedições biológicas conduzida nos últimos anos na Amazônia está descobrindo uma riqueza natural inesperada na chamada Calha Norte- uma região cobiçada por mineradoras, madeireiras e pelo setor hidrelétrico.

A surpresa com a biodiversidade da faixa de terra ao norte do rio Amazonas, nos limites do Pará, começou a ficar clara nos últimos meses, com um levantamento que Estado articulou após criar cinco unidades de conservação em 2006.

A área pertence ao mesmo centro de endemismo (macrorregião ecológica) do Suriname e da Guiana Francesa, e sua fauna e flora é mais parecida com a desses países do que com o resto da Amazônia brasileira.

“Durante muito tempo se achou que essa região era um centro de endemismo pouco diverso em relação a outros da Amazônia e que era mais ou menos homogêneo, porque há uma predominância muito grande de floresta de terra firme”, diz Alexandre Aleixo, biólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi, que coordena as expedições. “Mas, o que a gente está vendo é que a Calha Norte aqui no Pará é um mosaico enorme de ambientes.”

Numa malha de trilhas cortadas na Reserva Biológica do Maicuru, que a reportagem da Folha explorou acompanhada dos biólogos, o que mais impressiona são mesmo as florestas de terra firme, dominadas pelos imensos angelins -árvores que atingem até 50 metros.

Vista do helicóptero a área é um grande manto verde homogêneo, mas ao explorá-la por terra é possível ver paisagens bens diferentes, que variam entre florestas abertas em cumes de morros, bambuzais, zonas dominadas por palmeiras e, perto dos rios e igarapés, as áreas de alagamento sazonal.

“A gente está vendo agora que as áreas mais importantes para conservação são exatamente os ambientes que oferecem essa quebra na homogeneidade que a terra firme tem”, diz Aleixo. Um passo importante para a preservação da região já foi dado quando o governo do Pará criou cinco unidades de conservação novas. Em algumas delas, a exploração de recursos naturais será permitida de forma limitada, mas ninguém sabe ainda como distribuir os espaços.

O que vai definir isso são os chamados planos de manejo, e o levantamento biológico que está sendo feito agora visa justamente subsidiar o trabalho.

Nova espécie

A riqueza natural da Calha Norte está ficando clara antes mesmo de o levantamento terminar -algo que requer uma análise cuidadosa dos espécimes coletados, levados ao Museu Goeldi. O grupo de especialistas em répteis já identificou uma espécie nova de cobra-cega, também conhecida como cobra-de-duas-cabeças.

“Estávamos instalando uma armadilha e cavando um buraco. Nós, sem querer, partimos o bicho no meio”, conta a bióloga Wáldima da Rocha. “Um dos auxiliares falou que tinha jogado fora um pedaço da “minhoca”. Eu olhei e vi que não era uma minhoca. Depois consegui achar a outra metade do bicho e, enfim, é uma espécie nova.”

Segundo o grupo da herpetóloga Teresa de Ávila Pires, que capturou duas surucucus na expedição, a área tem algo de especial. “Em toda minha carreira, de 40 anos, peguei umas cinco surucucus”, conta o holandês Marinus Hoogmoed, membro da equipe. “Pegar duas em um dia, agora, é uma coisa estranha. Significa que o bicho aqui provavelmente está em condições muito boas.”

Os resultados da expedição também têm deixado entusiasmados os botânicos Sebastião Maciel e Goreti de Souza, colaboradores do Museu Goeldi. Ambos têm trabalhado nos últimos anos para ampliar o estudo das pteridófitas -o grupo das samambaias- na Amazônia. “Elas têm grande importância porque são bioindicadoras de poluição e alteração ambiental”, explica Maciel.

Uma das “jóias” coletadas pelo grupo na Calha Norte é justamente uma pteridófita -a avenca Adiantum multisorum- que nunca havia sido fotografada, os únicos registros existentes eram textos e desenhos datados do século 18.

Mineradora que tentou cortar área de proteção virou parceira

As expedições que estão permitindo aos biólogos redescobrirem a Calha Norte, ironicamente, só tem sido possíveis porque uma empresa que fazia pressão para reduzir a área de conservação -a mineradora Rio Tinto- entrou na jogada.

Quando foi demarcada a Estação Ecológica do Grão-Pará, uma das unidades de conservação criadas em 2006, um território onde a companhia investiu grande esforço de pesquisa acabou sendo destinado à proteção integral. A Rio Tinto começou então a pressionar o Estado para rever a medida, mas a decisão foi mantida e o governo ainda deu a última cartada. A concessão de áreas para mineração na região, agora, só pode sair depois que os planos de manejo das unidades de conservação estiverem prontos.

“Para emitir uma nova licença de pesquisa mineral -neste caso fora da estação ecológica, dentro da Floresta Estadual do Paru-, então, nós colocamos uma condicionante”, conta o secretário de Meio Ambiente do Pará, Valmir Ortega. O governo ofereceu à Rio Tinto o direito de adiantar suas pesquisas no Paru, mas em troca a empresa ofereceria toda a estrutura para o levantamento biológico e socioeconômico da região, ferramenta fundamental para elaborar os planos de manejo.

Viagens de helicóptero, então, entraram no cardápio dos biólogos, e áreas antes quase inacessíveis passaram a ser exploradas. “A Rio Tinto está fornecendo apoio logístico, transporte, comunicação, segurança e aquisição de imagens de satélite de toda a área da Calha Norte no entorno das unidades de conservação”, diz Ortega. “Estimamos que o valor disso seja superior a US$ 1,5 milhão.”

O trabalho também é feito em parceria com outras entidades, como o Museu Goeldi e a ONG Conservação Internacional, que produzirá o primeiro mapa de biodiversidade completo da Calha Norte, previsto para sair em junho.
(Folha de SP, 9/11)

Fonte: Jornal da Ciência 3638, 10 de novembro de 2008.