Descoberto na África ecossistema de uma espécie só

16 de outubro de 2008 - 09:35

Bactéria sobreviveria mesmo após fim de todos os outros seres da Terra

Carlos Orsi escreve para “O Estado de SP”:

Dentro de uma mina de ouro da África do Sul, numa fenda de rocha cheia de água, a 2,8 km de profundidade, vive a bactéria Desulforudis audaxviator – e mais ninguém.

Longe da luz do sol e sem nenhuma outra criatura que sirva de alimento, a audaxviator (“viajante audaz”, em latim; o nome foi tirado de um trecho do livro Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne) usa a radiação do urânio presente nas rochas como fonte de energia e os minerais e gases dissolvidos na água como matéria-prima para produzir tudo de que precisa, incluindo mais cópias de si mesma.

Trata-se do primeiro ecossistema completo de uma espécie só já encontrado. “Ela constrói moléculas orgânicas incorporando carbono inorgânico e nitrogênio da amônia e nitrogênio elementar”, explicou ao Estado o cientista Dylan Chivian, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos EUA, principal autor da descoberta, publicada na edição desta semana da revista Science.

A independência da bactéria em relação às demais formas de vida da Terra é tamanha que, se algum tipo de catástrofe – como uma guerra nuclear – eliminasse toda a biosfera terrestre, a audaxviator provavelmente nem se daria conta. “Se a catástrofe não perturbasse a crosta a uma profundidade de 2,8 km, onde ela está vivendo, sim, ela continuaria”, disse Chivian.

Com exceção da audaxviator, todos os demais seres vivos dependem de outras formas de vida para existir: animais precisam do oxigênio gerado pelas plantas, plantas precisam de animais para polinização e de bactérias para fixar nitrogênio, bactérias precisam da matéria orgânica gerada por animais e plantas para se alimentar.

Mas a descoberta da audaxviator indica que esse arranjo não é obrigatório – e pode não se repetir em outros planetas. “O estilo de vida dessa bactéria prova que vida pode existir sem precisar da interdependência entre organismos, e que vida pode existir sem ser baseada em energia solar”, disse Chivian.

Porém, a bactéria hoje auto-suficiente não evoluiu sozinha. Seu genoma recebeu “doações” de outras criaturas. A audaxviator parece ter assimilado genes de arqueanos – seres microscópicos ainda mais primitivos que as bactérias. “Isso sugere que a evolução de um colonizador tão flexível pode acontecer melhor em um planeta rico, com diversidade de organismos, em vez de com uma linha só, evoluindo suas capacidades em isolamento”, afirmou Chivian.
(O Estado de SP, 10/10)

Fonte: Jornal da Ciência 3617, 10 de outubro de 2008