Brasileiros obtêm células-tronco de embrião humano
9 de outubro de 2008 - 11:14
Primeira linhagem nacional, batizada BR-1, poderá ser distribuída a outros grupos
Rafael Garcia escreve para a “Folha de SP”:
Uma década depois de a primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas ter sido isolada nos EUA, o Brasil conseguiu reproduzir a técnica. A realização nacional foi confirmada há uma semana e meia no laboratório de Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo). O trabalho será apresentado pela primeira vez amanhã em um congresso científico em Curitiba.
O domínio da técnica é importante porque essas células são hoje fundamentais para a pesquisa biomédica. São ferramentas científicas extremamente versáteis e, ao mesmo tempo, são o material promissor para terapias contra doenças degenerativas como mal de Parkinson e diabetes, possibilidade de prazo ainda incerto.
Entre a obtenção de embriões doados e o estabelecimento das linhagens de células-tronco, Pereira trabalhou quase dois anos, em parceria com o laboratório de Stevens Rehen, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
No meio do caminho, houve até um período de incerteza, pois a legalidade das pesquisas com embriões humanos -liberadas pela Lei de Biossegurança, em 2005-estava sendo questionada no Supremo Tribunal Federal. Mas o STF decidiu a favor dos cientistas.
“Foi muito emocionante”, disse Pereira à Folha. “A gente trabalhou nisso durante muito tempo e, enfim, estamos muito contentes agora.”
Após 35 tentativas frustradas, o grupo percebeu que uma das linhagens de células cultivadas em gel estava se reproduzindo e mantendo a “pluripotência”. Esse é o maior diferencial das células-tronco embrionárias em relação a outras: são capazes de se transformar em virtualmente qualquer tipo de tecido biológico. A linhagem da USP já gerou neurônios e células de músculo em teste.
Uma vez que elas se especializam, porém, perdem a versatilidade. Por causa disso, a pesquisa biomédica requer linhagens de células estáveis, que permaneçam indiferenciadas por tempo indefinido, mesmo se multiplicando. Esse foi o feito dos brasileiros, que se deram conta do sucesso em agosto.
“Eu estava com a Lygia nos EUA há um mês e meio, num “tour” em empresas de biotecnologia da Califórnia, e nossos alunos iam mandando para a gente as fotos [das culturas de células-tronco na USP]”, conta Rehen.
“Aí a gente viu que elas estavam começando a ficar com uma cara boa, com uma morfologia de colônia, como a gente chama. Quando a gente voltou, uma aluna dela veio fazer algumas coisas aqui no Rio para confirmar, e a gente viu de fato que ela tinha todos os marcadores.” Em outras palavras, estavam “ligados” os genes que conferem a pluripotência.
“De alguma forma, a gente está gerando uma autonomia nacional e, provavelmente, até a liderança na América Latina para trabalhar com essas células”, diz Rehen. Segundo ele, dentro de dois meses amostras da nova linhagem, batizada de BR-1, poderão ser enviadas a outros cientistas do país.
Não se sabe de qual casal veio o embrião masculino que gerou a linhagem BR-1. “Preferimos manter o máximo de anonimato”, diz Pereira, que contou com colaboração de duas clínicas de reprodução.
Pesquisador tentará agora criar linhagem usando tecido adulto
Mesmo tendo conseguido obter agora uma linhagem própria de células-tronco embrionárias humanas, pesquisadores brasileiros já se movimentam para conseguir produzir as chamadas células-tronco iPS -criações de laboratório que possuem grande versatilidade, mas não requerem o uso de embriões para serem obtidas.
Segundo Stevens Rehen, da UFRJ, porém, o Brasil ainda está à mercê da lentidão das importações para conseguir reproduzir esta técnica. “Acabei de comprar um reagente [material de pesquisa] crucial para fazer a reprogramação das células [as iPS]”, afirma o cientista “Recebi agora um e-mail da Merck dizendo que vai demorar 60 dias para me entregar.”
Segundo Rehen, esse tipo de demora deverá ser coisa do passado em breve, no que se refere à obtenção de células-tronco embrionárias humanas. Seu grupo na UFRJ desenvolveu uma técnica para multiplicação de células-tronco embrionárias em biorreatores que permite obtê-las em grande escala.
Segundo Rehen, a partir de uma amostra o método é capaz de produzir um montante de 900 milhões de células. “Colocando um milhão de células em cada tubinho já está bom.”
“Já temos um artigo submetido [a uma publicação científica] sobre isso”, diz. “Provavelmente vai ser o primeiro trabalho publicado sobre uma pesquisa com célula-tronco embrionária humana no Brasil.”
Rehen afirma que o clima de medo e incerteza que pairava sobre os cientistas nos anos em que as pesquisas com células-tronco vinham sendo questionadas na Justiça já é passado.
“Estamos maravilhosamente bem”, diz. “Houve um investimento grande do governo e o pessoal está bem motivado.”
Além de acelerar a pesquisa com os biorreatores, Rehen e Lygia Pereira afirmam que sua nova linhagem de células já é desenvolvida evitando o uso de material biológico não-humano. Assim elas já são mais adequadas para uso em testes clínicos no futuro, uma vantagem em relação às células-tronco de 1998 obtidas pelos cientistas americanos pioneiros.
(Folha de SP, 1/10)
Autonomia
O resultado das pesquisas com células-tronco embrionárias, alcançado com apoio do CNPq será apresentado para a comunidade científica nesta quinta-feira (2/10), durante o III Simpósio Internacional de Terapia Celular, que está sendo realizado na cidade de Curitiba, no Paraná.
As linhagens de células-tronco embrionárias são células indiferenciadas e têm como principal característica sua pluripotência, ou seja, quando implantadas novamente possuem capacidade de retomar o desenvolvimento normal e colonizarem diferentes tecidos derivados dos três folhetos embrionários existentes e sua diferenciação pode ser induzida para tipo celulares específicos como células precursoras hematopoiética, neuronal, endotelial, cardíaca e muscular.
“Outras linhagens de células-tronco embrionárias humanas já foram descritas fora do país desde 1998 e vêm sendo utilizadas em pesquisas sobre biologia do desenvolvimento humano e terapia celular, se revelando um importante modelo experimental. Porém não há nenhuma garantia da qualidade das mesmas e existe uma série de restrições quanto ao seu uso e a produção de patentes de produtos derivados das mesmas. Além disso, as linhagens disponíveis foram estabelecidas e cultivadas na presença de produtos animais, o que impossibilita seu uso terapêutico em seres humanos”, explica a pesquisadora Lygia Pereira.
Buscando autonomia para a pesquisa brasileira com este material e a geração de linhagens adequadas para o uso em seres humanos, o projeto reuniu pesquisadores do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, do Instituto de Biociências da USP, com pesquisadores do Laboratório de Neurobiologia Celular, do Departamento de Anatomia da UFRJ, coordenados pelo cientista Stevens Rehen, do Biotério de Experimentação da USP, coordenados pela pesquisadora Silvia Maria Gomes Massironi, em parceria com o Centro de Fertilização Assistida (Fertility), de São Paulo, o Centro de Reprodução Humana Prof. Franco Jr, de Ribeirão Preto, e o Instituto Mara Gabrilli.
“Estamos trabalhando no projeto desde 2006, após ser selecionado no edital do CNPq. Descongelamos em torno de 250 embriões. Destes, 50 chegaram até o estágio de blastocistos e foram utilizados nos experimentos. Destes, conseguimos uma linhagem, a BR-1”, conta a pesquisadora Lygia Pereira.
Após ser estabelecida esta primeira linhagem, os pesquisadores poderão multiplicá-la indefinidamente e suprirem a necessidade de pesquisa em vários grupos de pesquisa brasileiros. “Poderemos fazer a transferência da tecnologia para fomentarmos a área de pesquisa com células-tronco embrionárias humanas no Brasil e termos autonomia nesta área”, completa Pereira.
Marco da pesquisa no Brasil
O projeto faz parte do primeiro edital lançado pelo CNPq, no ano de 2005, que apoiou pesquisas com células-tronco. Este edital foi um marco para os investimentos brasileiros nesta área, iniciando a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas no país. Foram aprovados 45 projetos, num total de R$ 10,5 milhões. Destes projetos, seis estudaram células-tronco embrionárias humanas.
No segundo semestre de 2008, o CNPq lançou novo edital para apoiar pesquisas que busquem o desenvolvimento de procedimentos terapêuticos inovadores em terapia celular, utilizando células-tronco embrionárias, células-tronco adultas derivadas da medula óssea, células-tronco derivadas do cordão umbilical e células-tronco derivadas de outros tecidos. Para este edital serão investidos o total de R$ 10 milhões.
(Assessoria de Comunicação Social do CNPq)
Fonte: Jornal da Ciência 3610, 1º de outubro de 2008