Brasil começa a registrar clones
10 de fevereiro de 2010 - 07:11
Réplicas de bois e vacas agora têm direito à identidade, o que permite que sua genética seja comercializada
Já faz algum tempo que os clones caminham incógnitos pelos rebanhos bovinos brasileiros. Cerca de 70 animais foram clonados comercialmente no país nos últimos anos, segundo fontes do setor, mas nenhum deles tinha registro genealógico – o equivalente a uma carteira de identidade ou CPF – até agora.
Os primeiros registros só foram dados no ano passado, após um longo processo de negociação das associações de criadores com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Divisa Mata Velha TN 1, uma bezerra nelore nascida em Uberaba, Minas Gerais, é o primeiro clone zebuíno com “CPF” do mundo. O registro foi concedido em 1º de dezembro pela Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), a principal entidade da pecuária nacional – já que 80% do rebanho brasileiro é de raças zebuínas, principalmente a nelore.
“É um marco para o setor, sem dúvida”, diz o superintendente técnico da ABCZ, Luiz Antonio Josahkian, que desde 2005 batalhava pela aprovação das normas.
“O ponto-chave disso tudo é que, com o registro genealógico, o clone passa a ter valor comercial. Antes, era como se os animais não existissem”, explica o pesquisador Rodolfo Rumpf, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, um dos pioneiros da clonagem no Brasil e corresponsável pelo projeto. “A perspectiva agora é que aumente muito a demanda por essa tecnologia.”
A bezerra clonada é uma cópia genética da vaca Divisa Mata Velha, animal símbolo da fazenda Mata Velha, referência nacional em gado nelore. A sigla TN1 acrescida ao nome indica que o animal foi produzido pela técnica de transferência nuclear, que é a base da clonagem. Ela é a terceira vaca a merecer esse “sobrenome” no país. Antes dela, duas bezerras da raça Jersey já haviam sido registradas como clones em julho, no Rio Grande do Sul (mais informações nesta página).
Na maioria dos casos, a clonagem é usada para preservar o DNA de um animal elite, de alto valor genético (e monetário). São animais “top de linha”, usados exclusivamente para fins reprodutivos, como doadores de genes para outras gerações – seus filhos, netos e bisnetos – que vão disseminar suas características pelo rebanho.
O valor comercial, portanto, não está no animal em si, mas na sua “genética”, que pode ser comercializada por meio de sêmen (no caso dos machos), embriões (no caso das fêmeas, já que os óvulos não podem ser congelados) ou crias, obtidas de cruzamentos selecionados.
A Divisa original passou a vida em Uberaba, mas têm descendentes espalhados pelos rebanhos de todo o país, que compartilham suas características de boa mãe e boa reprodutora.
“A Divisa representa o que temos de melhor em seleção na Mata Velha. É um patrimônio genético que fazemos questão de preservar”, diz o diretor da fazenda, Nilo Muller Sampaio Jr. Aos 17 anos, a ex-campeã brasileira já é idosa para uma vaca. Seus óvulos são aspirados só duas vezes por ano.
Já a “nova Divisa” está com quatro meses. Assim que chegar à idade reprodutiva, dentro de um ano, sua genética poderá ser comercializada também. “Temos planos de clonar vários outros animais”, diz Sampaio. “Vamos clonar tudo agora.”
Bom negócio
Há pelo menos seis empresas trabalhando com clonagem comercial no país, além de vários laboratórios acadêmicos.
“O Brasil é referência mundial nessa área. Estamos na fronteira do conhecimento”, diz o especialista Flávio Meirelles, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (USP), em Pirassununga, no interior paulista, cujo grupo já produziu 36 clones em parceria com empresas da região. “A demanda por clones já é alta. Estamos quase no limite da nossa capacidade de produção.”
O clone da Divisa Mata Velha foi produzido pelo laboratório Geneal, em Uberaba, em colaboração com a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, que desenvolveu a tecnologia de clonagem e transferiu o conhecimento para a empresa por meio de uma Parceria Público-Privada.
Segundo o superintendente da Geneal, José Olavo Mendes Junior, 26 embriões clonados foram transferidos para vacas receptoras, dos quais 5 produziram gestações. Dois clones chegaram a termo. Um sobreviveu.
“Foi um resultado fantástico”, avalia Mendes Junior. A taxa média de sucesso da clonagem para fêmeas, segundo ele, é de 1% a 3% – ou seja, um a três clones vivos para cada cem embriões transferidos. Para machos, o índice é um pouco melhor: chega a 10%.
Cada clone custa R$ 50 mil. Uma das exigências para o registro é a apresentação de um teste comparativo de DNA, feito em laboratório credenciado, provando que o animal é mesmo um clone, geneticamente idêntico ao outro.
Além disso, o proprietário do animal clonado precisa apresentar uma carta comprovando que deu consentimento à clonagem – uma salvaguarda à produção de “clones piratas”, já que bastaria roubar uma amostra de pelos de um animal para cloná-lo. “Você pode até fazer o clone, mas não vai conseguir registrá-lo”, afirma Josahkian, da ABCZ.
Clones produzidos antes da normatização poderão obter registro retroativo, dependendo de uma análise caso a caso pelo ministério. Os que nascerem agora poderão ser registrados diretamente pelas associações. Três já conseguiram autorização do ministério para isso: as de gado zebu (desde maio), jersey e holandesa (desde abril).
Primeiras cópias com ”CPF” nasceram após morte da ‘mãe’
Quando a vaca mais famosa e mais querida da fazenda Cabanha da Maya adoeceu repentinamente, no fim de 2007, os proprietários se desesperaram. Responses Wonder, da raça leiteira jersey, tinha sido importada dos Estados Unidos em 2001 e, além de ganhar várias premiações, era tão carinhosa com os tratadores que recebeu o apelido de Mimosa.
“Quando percebemos que ela ia morrer, foi um desespero”, lembra o administrador da fazenda, Chico Vieira. Mimosa já tinha sete filhos, mas a pureza de sua genética seria perdida para sempre. A solução de última hora foi tirar uma amostra da pele da vaca e enviá-la da fazenda em Bagé, no interior gaúcho, para a empresa de biotecnologia Cyagra Brasil, em Mogi Mirim, no interior paulista.
Dessas células da pele foram produzidos embriões clonados, dos quais nasceram, em julho de 2008, duas bezerras geneticamente idênticas à então já falecida Mimosa. “Quando vi as duas pela primeira vez não acreditei”, recorda Vieira. “Elas eram iguaizinhas à “mãe”. Até o jeito de andar é igual.”
Em abril de 2009, a associação dos criadores de gado jersey conseguiu autorização do Ministério da Agricultura para fazer o registro genealógico de animais clonados. E assim, três meses depois, as duas bezerras tornaram-se os primeiros clones registrados no Brasil: Excelência TNT Wonder 1 da Maya TN e Excelência TNT Wonder 2 da Maya TN.
A experiência deu tão certo que a fazenda encomendou vários outros clones. O último nasceu na semana passada – uma cópia da vaca Querida, que também morreu subitamente, quando tinha apenas 3 anos.
“Estamos resgatando o sonho de torná-la uma grande campeã”, aposta Vieira. Outros três clones estão em gestação e outros cinco animais da fazenda têm células congeladas na empresa, para uma eventual necessidade. “Já está virando até rotina para nós.”
Os clones servem como uma apólice de seguro genético, caso os originais venham a morrer. Ou então servem como uma fonte adicional de células e embriões para comercialização, caso a procura por sua genética seja tão alta que um animal só não dê conta do recado.
“A demanda aumentou bastante desde a autorização dos registros”, diz a diretora de produção da Cyagra Brasil, Andrea Basso. A empresa, fundada em 2005, já produziu 48 clones de diversas raças. Para este mês, estão previstos sete nascimentos. “Estamos produzindo clones zebuínos todos os meses”, completa Andrea.
Apesar das taxas de sucesso da clonagem serem baixas, estatisticamente, as chances de um criador conseguir um clone são altas, já que não há limite no número de células e embriões que podem ser produzidos. E apesar das perdas que ocorrem durante a gestação, os clones que sobrevivem ao nascimento são perfeitamente saudáveis.
Mas, curiosamente, não são 100% iguais aos originais. Assim como ocorre com gêmeos idênticos, fatores ambientais e genéticos além da sequência do DNA (que é idêntica) podem produzir diferenças tanto no comportamento quanto na aparência dos clones. “A genética é a mesma, mas isso não significa que o clone de um campeão será também um campeão”, diz o veterinário André Rigo, sócio-diretor da Cyagra.
(Herton Escobar)
(O Estado de SP, 10/1)
Fonte: Jornal da Ciência 3926 – 11 de janeiro de 2010.