A primeira família

25 de novembro de 2008 - 09:13

Mãe, pai e dois filhos enterrados abraçados há 4.600 anos são a mais antiga evidência da instituição nuclear

Um cemitério da pré-história, onde os corpos de pais e filhos jazem juntos, há milhares de anos entrelaçados em um abraço, é o mais antigo indício já encontrado da existência de famílias nucleares.

Há muito tempo os especialistas suspeitavam que a instituição é tão antiga quanto a Idade da Pedra, mas não havia provas concretas, apenas idéias baseadas em extrapolações da atualidade e especulações sobre a relação entre crianças e adultos achados anteriormente num mesmo túmulo.

— Temos feito muitas inferências sobre o passado a partir do presente, mas isso não é necessariamente verdadeiro. Agora, testamos a hipótese e descobrimos que pelo menos uma família nuclear existiu na Idade da Pedra — afirmou Wolfgang Haak, da Universidade de Adelaide, na Austrália, que coordenou as escavações e conseguiu, pela primeira vez, comprovar o parentesco.

As novas evidências vêm de uma detalhada análise dos restos mortais de 13 pessoas, enterradas em quatro túmulos num cemitério neolítico localizado em Eulau, na Alemanha. Testes de DNA feitos em quatro esqueletos achados na mesma tumba revelaram que o núcleo familiar constituído de mãe, pai e seus filhos biológicos remonta há pelo menos 4.600 anos — época em que os corpos do sítio foram cuidadosamente sepultados juntos, aparentemente depois de uma morte violenta.

Neste túmulo, a mãe abraça seu filho. Encolhido ao lado dela, um pai tem seus braços em volta do filho mais velho. “Uma relação direta de pais e filhos foi detectada em um dos túmulos, fornecendo o mais antigo indício genético já obtido de uma família nuclear”, escreveram os cientistas no estudo publicado na revista americana “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS).

Enterrados juntos, face a face

Foram achados ainda outros três grupos de adultos e crianças enterrados juntos, face a face, numa posição que espelharia seu relacionamento em vida, segundo os cientistas. Embora testes de DNA não tenham sido feitos para esses grupos, tudo indicam que também constituíam famílias, mesmo que não inteiramente biológicas.

Uma outra cova contém uma mulher, um bebê e duas crianças. Numa terceira, um homem adulto e duas crianças de até 6 anos de idade. Na quarta, uma mulher e uma criança de cerca de 5 anos. Para Wolfgang Haak, as informações reunidas nos túmulos do sítio oferecem fortes indícios da natureza das interações sociais nesse ponto inicial da história humana.

— Ao estabelecer esses elos genéticos entre adultos e crianças enterrados juntos, determinamos a presença de uma clássica família nuclear num contexto pré-histórico da Europa central — afirmou Haak. — Sua unidade na morte sugere uma unidade em vida. Mas não necessariamente estabelece a família nuclear como um modelo universal ou a mais antiga instituição das comunidades.

Os quatro esqueletos analisados geneticamente pertenciam a um povo neolítico que ocupava uma vasta área da Europa central e tinha como principal característica decorar sua cerâmica com cordas retorcidas. Essa cultura existiu de 2.700 a.C. até cerca de 2.000 a.C. e, além da cerâmica, é conhecida também pelo número significativo de cemitérios que deixou, indicativos de uma alta densidade populacional.

A região onde fica o sítio, segundo os especialistas, era propícia para a agricultura. Como esse povo era sedentário — plantava, colhia e caçava no mesmo lugar — poderia facilmente ter se estabelecido por lá. Poderia ser também um importante local de cruzamento, o que explicaria rivalidades com grupos rivais.

Os cientistas que trabalham no sítio de Eulau revelaram que os múltiplos sepultamentos encontrados no local não são fruto de enterros sobrepostos ao longo dos anos. De acordo com os especialistas, eles ocorreram ao mesmo tempo, provavelmente em função de algum ataque violento ao grupo.

Homens jovens não estavam presentes — talvez, especula Haak, eles estivessem trabalhando no campo ou tenham tido mais capacidade para fugir. Entre os mortos, homens mais velhos, mulheres e crianças.

— Havia homens mais velhos e feridos, crianças e mulheres. Qualquer que tenha sido a violência ocorrida naquele dia, eles não foram capazes de se defender — especulou Haak.

Sinais de violência nos corpos achados

Alguns dos corpos achados na escavação apresentam sinais de violência. Um dos esqueletos, de uma mulher, tinha ainda uma ponta de flexa em pedra lascada presa à sua espinha. Mas, em algum ponto, acredita o especialista, os sobreviventes retornaram. Conhecedores das relações pessoais entre os mortos, os sepultaram em covas diferentes, agrupando os núcleos familiares. Seguindo os costumes, trituraram ossos de animais, que serviriam de alimento aos mortos, e os depositaram nos túmulos. Alguns artefatos também foram colocados nas covas, como pedras e adornos de dentes.

Os cientistas também fizeram testes nos dentes dos esqueletos achados, um exame capaz de revelar a procedência dos indivíduos.

Desta forma, eles conseguiram estabelecer que parte das mulheres teria vindo de outras comunidades e entraram para aquele grupo pelo casamento.
(O Globo, 19/11)

Fonte: Jornal da Ciência 3645, 19 de novembro de 2008.