Vacina para o câncer testa criatividade de companhias novatas

14 de outubro de 2009 - 07:15

Parcerias internacionais, capital de risco e aportes públicos financiam pesquisas na área
Cibelle Bouças escreve para o “Valor Econômico”:
 
Na natureza, abandonar o ninho e lutar pela vida é uma tarefa árdua. Qualquer um que já assistiu a um documentário do Discovery Channel sabe disso. Por exemplo, de cada mil tartarugas marinhas nascidas, apenas duas chegam à fase adulta, o que explica a necessidade de criar reservas naturais.
 
É um papel que as incubadoras de empresas têm assumido, cada vez mais, na área da inovação tecnológica. Segundo a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec), 50% das empresas do setor não chegam a dois anos de existência. Entre as companhias ‘criadas’ em incubadoras, a taxa de mortalidade é bem menor – 20%.
 
É sob esse ambiente mais seguro que três empresas brasileiras, todas nascidas em incubadoras ou universidades, tentam acelerar o passo para colocar no mercado, até 2010, vacinas para o tratamento do câncer, um dos segmentos mais promissores do mercado farmacêutico.
 
Para não “morrer na praia”, a FK-Biotec, a Biocancer e a Genoa Biotecnologia estão lançando mão de recursos que vão desde o financiamento público até aportes de fundos de investimento e parcerias internacionais.
 
A FK-Biotec, fruto da Incubadora Tecnológica da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec) de Porto Alegre, buscou apoio no Canadá. Ontem, a FK-Biotec e a canadense ZBx Corporation submeteram um protocolo para a realização de pesquisas clínicas em três hospitais daquele país. A meta é obter o registro comercial de uma vacina terapêutica para tratamento do câncer de próstata no Canadá e no Brasil. A vacina é preparada a partir de células do tumor do paciente, afirma o diretor-presidente da FK-Biotec, Fernando Thomé Kreutz.
 
O Canadá não será apenas um campo de teste clínico. As duas empresas, que cooperam entre si há quatro anos, recentemente criaram uma nova companhia – a FK-Nova – com plano de fazer uma oferta inicial de ações na Bolsa de Toronto no prazo de 12 meses.
 
A decisão de buscar o mercado acionário canadense, em vez do brasileiro, foi tomada porque no Canadá os investidores estão mais acostumados a apostar em companhias menores e concentradas em segmentos mais arriscados, diz Kreutz. A expectativa é de obter uma captação inicial de US$ 14 milhões.
 
A parceria com a ZBx também prevê o uso do laboratório canadense para a produção comercial da vacina para atender a América do Norte. “Esse é um passo importante no processo de internacionalização da empresa”, diz Kreutz.
 
A Biocancer, de Belo Horizonte, não quis buscar parcerias com outras empresas. Em vez disso, preferiu obter recursos de investidores – no caso a Fundação Biominas e o fundo Novarum. Agora, a companhia aguarda a aprovação de recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para iniciar a fase 2 da pesquisa clínica.
 
Desde 2003, a Biocancer desenvolve uma vacina terapêutica que utiliza peptídeos (moléculas de aminoácidos) para estimular o sistema imunológico do paciente a combater as células cancerígenas.
 
Normalmente, os produtos farmacêuticos passam por quatro fases de experimentação. As companhias brasileiras estão na segunda etapa – a da busca de uma dose que ofereça um resultado mais eficaz com menor toxicidade.
 
A legislação brasileira permite o registro comercial na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a comercialização de vacinas aprovadas nas duas primeiras fases de estudos clínicos. As autoridades do setor dizem, no entanto, que a fase três, cujos testes exigem um número maior de laboratórios e pacientes, é vital para o desenvolvimento do produto. Ou seja, a prova de fogo das companhias brasileiras ainda está para começar.
 
“As vacinas registradas apresentam resultados iniciais interessantes, mas são necessários mais estudos comprovando que são seguras e oferecem ganhos significativos ante os tratamentos convencionais” afirma Carlos Gil, coordenador da área de pesquisa clínica do Instituto Nacional do Câncer (Inca), um órgão do Ministério da Saúde. “São exigências adotadas em todo o mundo e no Brasil não seria diferente.”
 
Na FK-Biotec, a projeção é iniciar a fase três – de comparação da eficácia da vacina com outros tratamentos existentes – no ano que vem. A etapa, diz Kreutz, deverá incluir mais de 240 pacientes distribuídos em diferentes centros de pesquisa em Porto Alegre e São Paulo.
 
A Biocancer também se prepara para essa etapa. Segundo o diretor clínico Alberto Wainstein, a segunda fase deve ser concluída em seis meses. A expectativa é obter na Anvisa o registro para comércio da vacina ainda em 2010. “Como ela não possui similar no mercado, o registro comercial pode ser feito já na fase 2”, afirma o executivo.
 
Após o registro, a intenção da empresa é solicitar o registro para tratamento de outros tipos de câncer, como de próstata, rim e melanoma. “A técnica pode ser replicada para quase todo tipo de câncer, mas é preciso primeiro demonstrar que é efetiva para um tipo específico”, diz Wainstein.
 
O lançamento mais antigo de uma vacina para câncer no Brasil foi feito pela Genoa Biotecnologia, em 2005. Em parceria com o Hospital Sírio Libanês e o Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, a empresa desenvolveu uma vacina para tratamento de câncer de pele e de rim. A técnica consiste em retirar parte do tumor do paciente, de onde são extraídos os antígenos. Mais tarde, eles são misturados ao núcleo das células sanguíneas de um doador são. A combinação é injetada no organismo do paciente, induzindo seu sistema imunológico a combater as células cancerígenas.
 
A vacina foi lançada em doses de R$ 3,5 mil, com custo anual próximo a R$ 28 mil por paciente. O tratamento convencional gira em torno de R$ 17 mil por mês. Mesmo com custo menor, porém, a venda do tratamento avançou pouco, informa o presidente da empresa, Luiz Heraldo Camara Lopes. “Os projetos estão caminhando em passos mais lentos do que o previsto”, afirma o executivo. A Genoa espera captar recursos para concluir a fase 3 de testes clínicos.
 
Contexto
 
A corrida pela prevenção ao câncer com vacinas teve início na década de 70, mas só uma iniciativa foi bem-sucedida: a vacina de prevenção a quatro tipos de HPV (papiloma vírus humano). A virose é o principal fator de risco ao câncer de colo do útero.
 
A Agência Internacional para Pesquisa de Câncer, vinculada à Organização Mundial de Saúde, estima que no Brasil houve 19 mil novos casos da doença em 2008; no mundo, foram 471 mil ocorrências.
 
Atualmente, três laboratórios produzem a vacina: Merck Sharp & Dohme, GlaxoSmithKline (GSK) e Roche. No Brasil, o produto é vendido desde 2007. A Merck Sharp & Dohme, por exemplo, já imunizou 30 mil brasileiras, mas considera o número pequeno. Para ganhar mercado, a empresa negociou com a Credicard a venda da vacina no cartão de crédito em dez mensalidades, diz o diretor de relações institucionais da empresa, João Sanches.
 
“Há uma aceitação crescente, mas as vendas só serão massificadas quando o produto for incorporado ao calendário de vacinação do governo”, afirma.
 
Procurados, os outros laboratórios preferiram não comentar o tema. O Ministério da Saúde estuda há dois anos a inclusão da vacina no programa nacional de imunização, mas ainda não chegou a um acordo com os laboratórios a respeito do preço. Em clínicas particulares, os preços variam entre R$ 200 e R$ 500.
 
Apesar da crise, principais agências de fomento preservam orçamento
 
A sobrevivência das empresas de inovação no Brasil depende sobretudo dos financiamentos a baixo custo oferecidos pelos agentes vinculados ao governo. Apesar de a crise financeira internacional haver comprometido parcialmente a arrecadação fiscal, as duas maiores agências de fomento tiveram preservados seus orçamentos.
 
A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, deve encerrar o ano com liberação de recursos pouco superior a R$ 2,5 bilhões. No ano passado, os recursos executados somaram esse valor, informa o superintendente financeiro da Finep, Luiz Antonio Coelho Lopes.
 
“A expectativa inicial era de obter um orçamento mais próximo de R$ 3 bilhões. O valor final não afetou o que já estava contratado, mas nos impediu de lançar um número maior de editais”, afirma Lopes.
 
Em 2009, a Finep lançou um edital para financiamento de projetos, com recurso total de R$ 450 milhões. Ao todo, foram qualificadas 199 propostas de pesquisa. No ano passado, a chamada pública também previu a oferta de R$ 450 milhões em recursos e 245 projetos foram aprovados. O orçamento para o próximo ano não foi definido, mas há expectativa de que o valor flutue novamente entre R$ 2,5 bilhões e R$ 3 bilhões.
 
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foi favorecida pela arrecadação fiscal paulista, superior à média nacional. A instituição, vinculada à Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo, deve encerrar o ano com o desembolso de R$ 755,7 milhões, ante R$ 637,9 milhões no ano passado. “O orçamento ficou dentro das expectativas, mas houve aumento da busca de financiamento pelas empresas”, observa Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fapesp.
(Valor Econômico, 1/10)

 

Fonte: Jornal da Ciência 3860, 01 de outubro de 2009.