Da escuridão à luz

21 de agosto de 2009 - 06:15

Cientistas norte-americanos usam vírus para inserir cópias sadias de genes na retina e devolver a visão a portadores de doença que leva à cegueira
Rodrigo Craveiro escreve para o “Correio Braziliense”:
 
A primeira visão que o canadense Dale Turner, 23 anos, teve ao sair do hospital foi o céu azul e límpido. Era o terceiro dia de fevereiro de 2008. “Foi a coisa mais magnífica que vi. As lágrimas rolavam da minha face”, contou ao Correio, por telefone.
 
Dale nasceu com amaurose congênita de Leber tipo 2 (LCA2, pela sigla em inglês), uma rara doença hereditária que provoca cegueira parcial ou total. Até o início do ano passado, o estudante de direito havia buscado vários tratamentos. Não conseguia enxergar detalhes. “Eu via apenas uma área pequena, como uma televisão”, explicou.
 
O “milagre da medicina” foi oferecido pela equipe de Barry Byrne, cientista do Laboratório de Genética Molecular e Microbiologia da Universidade da Flórida. Depois de uma cirurgia revolucionária, Dale recebeu alta em 48h. “A recuperação foi rápida e minha visão melhorou muito”, admitiu.
 
No Centro de Terapia Gênica Powell, da Universidade da Flórida, Byrne e seus colegas criaram um vírus adenoassociado. Então, selecionaram Dale Turner, outro homem e uma mulher, portadores de LCA2. Decidiram, então, usar esse micro-organismo como uma espécie de “táxi genético”: ele transportou cópias saudáveis do gene RPE65 até a parte posterior da retina.
 
A parte mais importante do procedimento foi realizada na sala de cirurgia: os médicos injetaram o vetor da terapia gênica (a cópia do gene RPE65) na região posterior do olho e aguardaram a cicatrização – que durou até 72 horas.
 
Nos pacientes acometidos pela doença, esse gene sofreu mutações que lhes impediram de desempenhar seu papel crucial para a visão. “O RPE65 é exigido para a reciclagem da proteína rodopsina e para que as células criem os sinais elétricos resultantes na visão”, explicou Byrne ao Correio, em entrevista por e-mail. A rodopsina é essencial para a secretação de um tipo de vitamina E imprescindível para o papel desses 100 milhões de células fotorreceptoras.
 
“O nível de eficácia do novo tratamento é equivalente ao paciente sair de um cinema para um dia de sol”, comparou o especialista. De acordo com ele, os voluntários tiveram uma melhora de 63 mil vezes na visão noturna e de mil vezes na diurna.
 
Byrne pretende concentrar a pesquisa na avaliação de mais seis portadores de LCA2 – no total, serão seis adultos e crianças. “Os testes iniciais mostram um aumento de milhares de vezes na sensibilidade à luz, na região tratada”, comemorou. O médico afirma que os efeitos benéficos têm durado o ano inteiro, após um único tratamento.
 
Espanto
 
Essa descoberta de uma visão ainda mais especializada causou espanto até mesmo nos especialistas. Até então, a ciência acreditava que a perda desse sentido denotava mudanças permanentes na comunicação entre o olho e o cérebro. Um dos pacientes chegou a descrever a habilidade de ver o relógio no painel do carro de sua família. “Essa foi a pista para que avaliássemos a possibilidade de novas conexões entre a área tratada da retina e o cérebro”, explicou Byrne.
 
Além de devolver a visão aos cegos com LCA2, os cientistas da Universidade da Flórida acabavam de constatar que o cérebro tem o poder de se reativar para reconhecer áreas da retina que foram restauradas pela terapia gênica. Uma incrível adaptabilidade que pode ser usada a favor dos próprios oftalmologistas no processo de recuperação.
 
“Em nosso estudo, percebemos que, após um ano, o paciente desenvolveu uma nova área de visão central que melhorou sua habilidade de enxergar a luz baixa”, disse Byrne.
 
Segundo ele, a recuperação marcante na visão, em questão de poucos meses, oferece à medicina uma nova perspectiva sobre como o cérebro se desenvolve e consegue se reparar. “A nova visão depois de mais de 15 anos nesses pacientes mudará o modo com que pensamos sobre a adaptação da função cerebral”, reconheceu.
 
Byrne garante que existem mais de 300 tipos de cegueiras de origem genética que poderiam, em tese, ser ajudadas pela terapia gênica. Ele admite que alguns problemas serão mais difíceis de se tratar, mas reconhece que o estudo fornece as pistas necessárias para que a ciência se mova adiante. “Acreditamos que doses adicionais do vetor no segundo olho ou em regiões mais amplas da retina oferecerão o mesmo benefício”, comentou.
(Correio Braziliense, 14/8)

 

Fonte: Jornal da Ciência 3827, 14 de agosto de 2009.