União com máquinas vai libertar o cérebro do corpo
15 de junho de 2009 - 05:54
Radicado nos EUA, neurocientista Miguel Nicolelis vê sistema nervoso como uma “democracia”
O desenvolvimento da neurociência deverá libertar o cérebro do corpo e permitir, por exemplo, que seres humanos explorem o espaço usando máquinas capazes de transmitir movimentos e sensações. A previsão foi feita pelo do neurocientista paulistano Miguel Nicolelis, em sabatina promovida pela Folha anteontem. “Em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância”.
Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA) e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra, Nicolelis disse também que está “à beira de demonstrar que é balela” a ideia de que o córtex cerebral se divide em áreas.
O pesquisador é pioneiro no estudo de interações entre cérebro e máquina, e já realizou proezas tecnológicas como fazer um robô no Japão andar impulsionado por ondas cerebrais de uma macaca nos EUA. O objetivo do trabalho é desenvolver próteses neurais que permita a pessoas paralisadas andarem novamente.
Nicolelis foi entrevistado pelos jornalistas Gilberto Dimenstein, membro do Conselho Editorial da Folha e Hélio Schwartzman, articulista do jornal, e pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ. A mediação foi de Claudio Angelo, editor de Ciência. Leia trechos da entrevista:
– Imagem do Brasil
Em 1991, cheguei um dia para dar uma palestra na Califórnia e falei que era da Universidade de São Paulo. Quando terminei de falar, um americano olhou para mim e disse: “Isso é perto de Santa Monica?”
O que vejo [agora] é o Brasil com algumas coisas no centro da agenda científica mundial. O Brasil, nas projeções que vi, vai se transformar no grande celeiro do mundo, tem a biodiversidade, a possibilidade de ser o primeiro país a se livrar do petróleo, a energia alternativa.
– Milionários
Nos Estados Unidos, as pessoas que têm muito dinheiro pensam que é a chance de comprar a imortalidade. A [Universidade] Duke teve várias doações de pessoas que queriam associar o nome delas a uma descoberta. E evidentemente que o governo americano foi muito esperto de criar uma legislação fiscal que ajuda.
Aqui no Brasil a relação com dinheiro é outra. As pessoas ainda têm a ilusão de que levam com elas o dinheiro. A elite americana valoriza mais uma educação de alto nível.
– Burocracia
É muito mais fácil eu doar dinheiro para a Duke do que para a USP. Se eu quiser hoje pôr o nome da minha avó no anfiteatro da Faculdade de Medicina, provavelmente morro antes de conseguir – e o nome dela nem é tão longo.
Quando cheguei aqui no Brasil para criar nosso projeto [o Instituto Internacional de Neurociência de Natal], eu contei: foram 65 assinaturas para provar que eu existia.
Quando era aluno da USP, era impossível importar um anticorpo, um insumo. Melhorou muito, mas ainda não é o que um cientista num laboratório de ponta desejaria ter.
– Ouro do Pentágono
[Ao ser questionado sobre receber dinheiro do Departamento de Defesa americano.] O que eles me pediram foi para criarmos uma forma de, em 30 anos, fazer os veteranos de guerra paralisados voltarem a andar. E estamos chegando lá.
O Sidney Simon, que é meu grande amigo americano, falou: “Dinheiro é dinheiro”. Não me meto. Dou uma palestra, mostro o que sei fazer, aí entram dez advogados e eles sentam com quem quer doar.
– Deus
Deus, na minha opinião de palmeirense – você acredita se quiser -, é uma necessidade que todos nós temos de explicar de onde viemos. Aparentemente existe uma necessidade do nosso cérebro de contar uma história.
Acho que o cérebro é um grande simulador, ele simula a realidade completa, toda a história da nossa vida. E essa história tem que ter um começo, ela tem que ter uma explicação lógica de onde nós viemos. Nesse domínio vem a noção de Deus, a religião.
– O cérebro unificado
Nós vamos publicar daqui a poucas semanas registros do córtex visual em que 12% das células respondem à informação tátil e vice-versa. Faz cem anos que essa ideia [de que o cérebro se divide em “casinhas”, cada uma com uma função] se cristalizou. Nós estamos à beira de demonstrar que isso é balela.
A função, no cérebro, não é determinada geograficamente. Ela é determinada de acordo com as demandas da tarefa que se impõe ao cérebro.
Então, se uma pessoa perde a visão e ela tem que navegar pelo mundo sem o sistema visual, ela remapeia o atributo táctil por todo o córtex, inclusive o visual. Nós estamos abandonando essa ideia de que o cérebro é um grande mosaico e partindo para noção de que o cérebro é uma grande democracia.
– Parkinson
[Sobre o tratamento contra Parkinson com estimulação elétrica desenvolvido por sua equipe na Duke.] Quando começamos a olhar para animais [camundongos] que desenvolviam um Parkinson muito violento e muito rápido, tudo levava a crer que a atividade do cérebro parecia uma crise epiléptica. Então falamos “isso é uma crise epiléptica, vamos tratá-la como se fosse uma”.
As vantagens de estimular atrás da medula espinhal são várias: é mais seguro, muito mais fácil, muito mais barato. Mas a grande vantagem, do ponto de vista teórico, é que muda a forma de olhar para o cérebro. Ao invés de tentar tratar um lugarzinho, que era o que a teoria anterior achava, você está tratando o circuito inteiro.
Do ponto de vista filosófico, isso é uma mudança radical. Já temos os modelos para primatas prontos e nós vamos fazer boa parte desses estudos lá em Natal. Espero que, se os resultados em macacos forem tão bons quanto eles foram nos roedores, no ano que vem a gente começa a fazer esses estudos em humanos.
– Corpo mecânico
O pensamento nada mais é do que uma onda elétrica pequenininha, se espalhando pelo cérebro, numa escala de tempo de milissegundos. O que fizemos [com primatas] foi descobrir que é possível ler esses sinais e extrair deles comandos motores capazes de reproduzir num braço mecânico ou numa perna robótica a intenção motora daquele cérebro.
– Telecinesia
E nós fechamos o circuito: o macaco usou sinais do córtex motor para controlar a prótese e a prótese [usando sensores, quando o pé atinge o chão] mandou informação de volta sem usar o corpo para nada. O cérebro se libertou do corpo de vez.
Isso quer dizer que, a longo prazo, nosso alcance como humanos vai mudar completamente. Você vai ter a chance de atuar voluntariamente em um ambiente a milhares de quilômetros da sua presença física.
No futuro, em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância. A Agência Espacial Europeia analisou nossos trabalhos e concluiu que não tem sentido mandar humanos para Marte. Nós vamos de qualquer jeito, manda algo que nos represente pelos nossos pensamentos.
– Universidades
Se estivesse na situação de um jovem hoje, pensaria muito antes de ir para a universidade. Ela precisa mudar demais, se reestruturar tremendamente.
As divisões são do século 19, elas têm muito pouco a ver com a realidade. Precisamos criar mecanismos para acelerar e desburocratizar o processo de formação de cientistas. No mundo inteiro.
– Lula e PT
Eu não me rotularia um petista, me rotularia um humanista [ao ser perguntado se seu petismo arrefeceu]. E eu e mais 80% da sociedade brasileira acreditamos que o atual governo teve avanços fundamentais.
– Ciência “do mal”
A ciência transformou-se em uma coisa misteriosa. Sempre que fazia uma palestra, a primeira pergunta era: “E se isso for usado para o mal?”. Vejo na imprensa no mundo inteiro esse afã de “e se fizer um gene desses errado, vai surgir um Frankenstein que vai destruir a raça humana”. Pode? Pode. Mas tudo pode. O Palmeiras pode ganhar o título neste ano. Mas as chances são remotas.
(Folha de SP, 10/6)
Fonte: Jornal da Ciência 3781, 10 de junho de 2009.