A coerência de Rousseau

8 de outubro de 2008 - 12:00

Texto inédito de Bento Prado Jr. sai da gaveta depois de mais de 30 anos com a publicação póstuma de “A retórica de Rousseau e outros ensaios”. Livro propõe interpretação inédita sobre a obra do filósofo suíço

Fábio de Castro escreve para a “Agência Fapesp”:

No início da década de 1970, o filósofo Bento Prado Jr. (1937-2007) escreveu um longo ensaio no qual propunha uma interpretação original sobre a obra do pensador suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O texto, que permaneceu inédito por mais de três décadas, chega agora ao público com o lançamento de “A retórica de Rousseau e outros ensaios”.

O livro resgata o texto inédito e outros oito publicados anteriormente em revistas acadêmicas. O lançamento será nesta terça-feira (30/9), às 19 horas, em São Paulo. O evento incluirá uma mesa-redonda com Franklin de Mattos, organizador do livro, Paulo Arantes e Ruy Fausto, todos professores do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

De acordo com Mattos, a importância da obra reside em identificar, em uma análise notavelmente original, uma unidade na obra do filósofo suíço. “Para Bento Prado, a unidade do pensamento de Rousseau é dada pela teoria da linguagem, que foi exposta em seu texto sobre a origem das línguas. Esse texto, que não foi publicado em vida pelo suíço, é até hoje visto pela maioria dos comentadores como uma obra menor”, disse Mattos à Agência Fapesp.

Bento Prado Jr. mostra, segundo Mattos, que todo o pensamento de Rousseau é unificado por sua concepção retórica da linguagem. Ela permite compreender a coerência do filósofo europeu como autor de uma teoria política, escritor de teatro, romancista.

“Em sua concepção retórica da linguagem, Rousseau defende que a língua não existe para que possamos comunicar nossas idéias. Ela foi inventada para que possamos comover o outro”, disse Mattos.

Para Bento Prado Jr., a subjetividade se distingue, em Rousseau, pela expressão do sentimento. Para uma das principais figuras do Iluminismo, a comunicação verdadeira entre os sujeitos só se daria pela fala inspirada por sentimentos desinteressados, e não quando regida pela necessidade material, passível de cálculo.

“Enquanto os filósofos da época achavam que a linguagem expressava nossas necessidades físicas, ele dizia que ela expressava nossas paixões. Essa concepção retórica da linguagem, no fundo, é uma concepção política da linguagem, porque implica o outro”, afirmou.

Segundo Mattos, Bento Prado Jr. descobre no pensador suíço uma estratégia retórica que pressupõe a linguagem como parte de uma situação concreta na qual existe um reconhecimento mútuo entre aquele que fala e aqueles para quem se fala.

A comunicação intersubjetiva, segundo a interpretação de Bento Prado Jr., encontra um campo privilegiado na escrita literária. Por isso os escritos de Rousseau teriam transitado por diversos gêneros: a autobiografia filosófica em Confissões, a teoria política em Do contrato social, o ensaio pedagógico romanceado em Emílio ou o romance em A Nova Heloísa.

Para Mattos, o livro também tem o mérito de incluir, de forma subjacente, uma reflexão sobre a época em que foi escrito. “Um aspecto interessante é que ele consegue harmonizar dois paradigmas excludentes da década de 1960: lingüística e política. Ao abordar esses dois temas, colocando-os de certa forma em um mesmo plano, Bento Prado Jr. remete à década de 1960 naquilo que ela teve de mais duradouro”, destacou.

Impacto internacional

Segundo Mattos, o texto inédito se tornou uma espécie de lenda entre amigos e seguidores de Bento Prado Jr. O autor manifestou em várias ocasiões o desejo de publicá-lo. “Não sei dizer por que ele nunca foi impresso, sendo tão importante e original. Conversamos a respeito um pouco antes de sua morte e ele manifestou o desejo de publicar”, afirmou.

Mattos discorda que Bento Prado Jr. não dava importância à publicação de livros. “Alguns acham que ele era um tipo socrático, que privilegiava as formas de comunicação oral em detrimento da escrita. Isso é uma grande bobagem. A quantidade de textos que publicou é imensa”, afirmou.

O organizador do novo livro ressalta que o ensaio A retórica de Rousseau, escrito originalmente em francês, tem potencial para atravessar fronteiras. Os textos de Bento Prado Jr. sobre a filosofia de Henri Bergson (1859-1941), segundo ele, foram traduzidos para o francês em 2002 e se tornaram referência para os estudiosos de Bergson na Europa.

“A obra sobre Bergson também demorou cerca de 20 anos para ser publicada e se tornou referência internacional. Sem dúvida o livro sobre Rousseau poderá seguir o mesmo caminho. Na orelha, o presidente da Sociedade Rousseau de Genebra, Alain Grosrichard, já indica isso ao enaltecer a grande originalidade da interpretação de Bento Prado Jr.”, afirmou.

Para Mattos, o livro dá uma amostra da lacuna deixada na filosofia brasileira pela morte do autor, em 2007. Bento Prado Jr. participou nas bancas de doutorado, titularidade e livre-docência de Mattos na USP.

“Infelizmente não tive a oportunidade de ser aluno dele, pois quando entrei na faculdade, em 1969, ele foi aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional 5 e se exilou até 1974. Era um homem finíssimo, dono de um grande e irônico senso de humor. Faz muita falta para nós e para a filosofia”, disse.

Mais informações: http://www.cosacnaify.com.br/noticias/bento_rousseau.asp
(Agência Fapesp, 30/9)

Fonte: Jornal da Ciência 3610, 1º de outubro de 2008