Governo revê controle de pesquisa com seres humanos

27 de agosto de 2008 - 08:47

Ministério da Saúde pretende descentralizar avaliação de estudos; Sociedade Brasileira de Bioética é contra

Fabiane Leite escreve para “O Estado de SP”:

O Ministério da Saúde quer modificar o sistema nacional de avaliação de pesquisas científicas com seres humanos, utilizadas em testes de remédios. A pasta encaminhou em junho a representantes do Conselho Nacional de Saúde, órgão de controle social da pasta, proposta para se elaborar uma nova lei ou portaria sobre o tema e sugeriu, por exemplo, que os estudos de áreas prioritárias, como a de pesquisas feitas com a cooperação de laboratórios multinacionais, não tenham mais de passar necessariamente pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), em Brasília. As pesquisas passariam somente por comitês locais de avaliação.

Além disso, o ministério considera que a regulamentação das pesquisas deve ser feita por outra norma legal, e não por resoluções.

A Sociedade Brasileira de Bioética reagiu e acusou o ministério de tentar violar a autonomia da comissão e de buscar a “destruição” da Conep. Ainda de acordo com nota postada no site da entidade científica, as mudanças são sustentadas por argumentos “sem força moral” e “encobridores da verdade”: a insatisfação de pesquisadores e empresas com a revisão de seus protocolos de pesquisa.

“Nos últimos anos, esse sistema que é bem arquitetado e imaginado, inclusive pelo fato de ser ligado ao conselho, passou a não cumprir com eficiência as funções. Se falar com qualquer pesquisador, ele vai dizer que não está satisfeito porque o sistema não está funcionando”, justificou o secretário de Ciência e Tecnologia do ministério, Reinaldo Guimarães.

“O problema são pessoas que pensam que qualquer ajuste em um sistema que é bom, mas que está batendo pino, é atender aos interesses da indústria.”

A comissão é uma instância de avaliação de pesquisas com seres humanos que faz parte do organograma da próprio ministério. Recebe demandas de mais de 500 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) espalhados pelo País, especificamente de áreas consideradas prioritárias, como os estudos que têm cooperação estrangeira e os que envolvem população indígena.

No ano passado, 739 estudos foram avaliados pela comissão e 6 mil pessoas atuam hoje voluntariamente no sistema que engloba CEPs e a Conep, normatizado por resoluções do conselho.

“É um movimento único e admirável e que garantiu a melhora da qualidade das pesquisas no País e evitou abusos. É uma tentativa de diminuir a força da Conep e não sabemos o porquê”, afirmou a presidente da sociedade, Marlene Braz, também integrante do conselho, pesquisadora e docente da Fiocruz.

Ela destaca que a centralização da avaliação de determinadas pesquisas em Brasília garante maior independência na análise dos estudos, pelo distanciamento da comissão dos autores dos trabalhos. Ainda de acordo com a presidente, o ministério deveria auxiliar a melhorar a estrutura do sistema.

A proposta de mudança do ministério cita com justificativa o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105 (Lei de Biossegurança), que autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias no País. Segundo Guimarães, alguns dos votos proferidos mencionaram a fragilidade resultante de o sistema de revisão ética ter sido regulamentado por resolução do conselho e não por ato legal.

A sociedade de Bioética, no entanto, destaca que o ministro Cezar Peluso, que havia apelado para a criação de um órgão nacional para controlar as pesquisas, retificou sua posição, alegando ter sido informado da existência da Conep e do sistema de avaliação ética dos projetos de pesquisa.

Guimarães destaca que o tema será discutido com a Conep. A reportagem não conseguiu localizar coordenadora da comissão, Gyselle Tannous.

Helsinque

A discussão ocorre, coincidentemente, ao mesmo tempo que o mundo debate a revisão da Declaração de Helsinque, que orienta as pesquisas éticas com humanos. A última rodada de discussão sobre o tema foi encerrada ontem, em São Paulo.

Otmar Kloiber, secretário-geral da Associação Médica Mundial, que coordena a revisão, sinalizou que o texto final da declaração que será submetido à assembléia em outubro trará pelo menos uma mudança: a palavra “must”, que em inglês tem o sentido de dever, substituirá a palavra “should”, que expressa possibilidade e que enfraqueceria o texto. Sobre pontos polêmicos, como o uso de placebo (substância inócua) em pesquisas, ainda não é possível prever o texto final. “Mas é claro também que não é possível proibi-los”,disse Kloiber.
(O Estado de SP, 22/8)

Fonte: Jornal da Ciência 3582, 22 de agosto de 2008