Debates Occa – “Cultura material e reputação da comida”

3 de maio de 2018 - 17:00

 

Mais uma edição do Debates Occa! Desta vez o Observatório convida a pesquisadora Maria de Fátima Rodrigues (UFC/CNPQ) para refletir sobre o queijo coalho, um dos principais produtos da cultura alimentar cearense. Este queijo vem enfrentando alterações de normas de fabricação que, para muitos produtores, podem comprometer sua tradição, dentre outros aspectos. A pesquisadora vai apresentar perspectivas sobre o tema diante de novos cenários que surgem.

 

 

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Cultura material e reputação da comida:

reflexões sobre A agência do queijo COALHO

 

Compreendendo que as comidas dispõem de certa agência nos contextos de interação social, intenciono analisar como o queijo coalho, feito com leite cru, atua entre aqueles que o produzem e comercializam, influenciando moralidades alimentares e sendo por estas influenciado. Tal alimento tem se tornado personagem paradoxal de um cenário-simbólico produtivo em mudança no Ceará. Se, por um lado, a legislação e os órgãos de fiscalização sanitária o condenam ao desaparecimento, alegando tratar-se de um “risco à saúde”, por outro, ele sobrevive com relativa firmeza no comércio informal, apoiado em redes de defensores que o celebram como um produto assegurado pela tradição e um consumo mais sustentável. Nesse terreno de contradições, a qualidade emerge como um valor alimentar e um problema; um campo de luta ou um lugar de dissensos onde o queijo, como comida experiente, provoca (re)definições, sendo também afetado em sua materialidade significada. A imersão nesse panorama movediço de ações e concepções tem sido realizada desde 2015, através de pesquisa documental e de campo. Afinada à metodologia da entrevista compreensiva, como defendida por Jean-Claude Kaufmann, tenho abordado, de forma privilegiada, as narrativas de produtores e comerciantes desse queijo. Intencionando um rastreamento dos modos de atuação do mesmo nas vidas destes sujeitos específicos, um conceito em particular tem ganhado forma e força: a noção de reputação da comida, pensada em articulação às teorias da modernidade alimentar e da cultura material. Tal ideia ampara-se no pressuposto da comida como artefato culinário que dispõem de vida social própria e inspira considerar não apenas o contexto de implicações comerciais, jurídicas e culturais que consagram ou condenam o queijo em estudo, mas também o modo como este alimento provoca interações, mobilizando engajamentos, lutas e identificações com moralidades dietéticas. Assim, a análise tem sido conduzida na exploração de quatro dimensões intercambiáveis da experiência social do queijo que ressaltaram em campo: a estética, a higiene, a saúde e o gosto. Compreendendo, ainda, que a reputação do queijo não existe de modo desarticulado à uma série de relações deste com (a reputação de) outros artefatos que compõem sua cadeia produtiva, o estudo tem se desenvolvido no destaque de três articulações que vem se mostrando estratégicas: refiro-me às relações deste alimento com o leite, o coalho e a madeira. Estas rotas de abordagem do objeto de estudo (ainda em maturação) têm suscitado reflexões sobre o tratamento da comida como coisa material nas ciências sociais, abrindo caminhos para pensar o comestível em meio a uma trama sócio-histórica de saberes sanitários-nutricionais que afeta e é afetada por conteúdos morais e emocionais. Estes são acionados no interior de culturas cujos agentes assumem formas heterogêneas e, por vezes, literalmente invisíveis, tais como os microrganismos que sustentam a definição êmica do queijo de leite cru como “alimento vivo” e trabalham na composição de suas caraterísticas organolépticas, convocando a perspectiva sociológica para a convivência também com o microcosmo – a qual parece mobilizar, inclusive, uma nova forma de controle dos corpos: a microbiopolítica, nos termos de Heather Paxson.

Palavras-chave: cultura material, reputação da comida, agência do queijo coalho.