Artigo de Opinião: Reconhecendo Legítimos Saberes

5 de dezembro de 2023 - 13:31

 

Por Lana Nascimento – Pró-Reitora de Extensão

“Minha mãe… pode dizer que ela era rendeira, ela era marisqueira, ela era agricultora, ela era tudo. Tudo a minha mãe fazia, sabia fazer. E eu acompanhava ela e tudo isso eu fazia com ela. Eu trabalhava de enxada, eu arrancava caranguejo, eu tirava ostra. Eu ia fazer de tudo que tinha, no rio salgado, eu fazia com a minha mãe, e convivi com ela esse tempo todinho”. (Cacica Pequena).

Na Comunidade Encantada, em Aquiraz, a transmissão dos saberes, fazeres, experiências e valores sempre se fez assim, de geração em geração. Um conhecimento que também conta a nossa história, mas que esteve relegado ao plano de saber local, no máximo, um tema de pesquisa, uma matéria-prima para a produção científica, esta sim validada. Até o dia em que o saber formal bate à porta dessa comunidade.

Nos anos 1980, a Universidade atravessa a história da Cacica Pequena e a Cacica Pequena atravessa a história da Universidade. “Na era de 80, chegam os alunos da Uece aqui na Encantada. Chega esses alunos pedindo pra vir fazer um estudo aqui na nossa área. Eles entrevistaram tudo, entrevistaram nossas casas, entrevistaram o nosso território, entrevistavam as pessoas do lugar. A maioria do povo ria… achavam que eles vinham para matar, que já tinha a história da matança dos índios e o povo tinha medo. Eles trabalharam dos anos 80 até 84. E eles descobriram que nós não se chamava Cabiludinho da Encantada, porque todo mundo só conhecia nós como os cabiludim da Encantada. Aí eles foram pesquisar mais na frente e encontraram que essa história de cabiludo era apelido que o homem branco tinha botado em nós. Aí eles encontraram a nossa identidade aqui, que o nosso nome era Jenipapo-kanindé. E aí, eles foram embora. E aí a gente ficou muito preocupada que esse povo tinha olhado aqui, né? Aí ele disse assim: – olha, vocês têm que se organizarem, porque agora vocês foram descobertos e são indígenas e os grileiros vêm atrás de vocês. Aí, pronto. Agora sim. Agora sim. O que que vai ser de nós?

Aí eu botei o pé no caminho, fui lá na Zuleide, cheguei lá e conversei com ela. Que é aquelas casinhas ali perto daquela igreja, Nossa Santa Luzia. A Zuleide é branca. Mas ela é uma grande amiga nossa. Ela foi quem me ensinou a caminhar pra Fortaleza. Porque eu não sabia andar daqui pra Fortaleza. E aí… pra encurtar a história.. Ela disse: nós vamos pro Aquiraz e se nós não encontrar a porta aberta no Aquiraz nós vamos pra frente. Eles não abriram as portas para nós. Aí nós fomos lá para o Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Aí lá nós fomos recebida, tivemos uma advogada, a advogada foi trabalhar com nós. Aí pronto, aí só acabou o tempo da vergonha. Acabou o tempo ruim pra nós. E nós ficamos, como eu era uma pessoa assim, mais disposta das coisas, o que era de ser outra pessoa que tomava a busca das coisas aqui da aldeia, quem caminhava era eu. E assim fui reconhecida no mundo inteiro”.

Em 25 de novembro de 2016, em Limoeiro do Norte, durante o X Encontro Mestres do Mundo, a Cacica Pequena recebeu o título de Notório Saber em Cultura Popular. Ela também faz questão de lembrar que é guardiã da memória, doutora da mata e professora.

A inclusão dos mestres e mestras na educação formal tem sido marcada por importantes legislações e eventos que finalmente reconhecem a necessidade da história, da cultura e dos saberes de povos que constituem nossa diversidade geoétnica-brasileira, mas que por séculos não eram legitimados.

Constituem essa linha do tempo a Lei 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas, substituída, em 2008, pela Lei 11.645, a partir da qual passou-se a incluir também a história e cultura dos povos indígenas. Se o currículo pode legitimar hegemonias, mas também construir contra￾hegemonias e forças de resistência social, pode-se dizer que essas bases normativas foram marcos fundamentais para uma inclusão epistêmica, à qual mais tarde se associariam políticas de inclusão social e étnico-racial, como é o caso das cotas nas universidades.

Essas leis impulsionam a luta para que os próprios detentores dessas culturas e saberes transmitam seus conhecimentos nesses espaços formais de ensino.

É com a criação de leis estaduais de proteção e valorização de mestres e mestras de culturas, nos anos 2000, que se estabelece no Brasil com mais efetividade uma política de inclusão epistêmica dos saberes tradicionais, por meio dos detentores destes conhecimentos, os chamados tesouros vivos.

No estado do Ceará, o Plano Estadual de Cultura do Ceará (Lei nº 16.026, de 1 de junho de 2016) estabelece diretrizes para a promoção da interação entre mestras e mestres diplomados em espaços de educação, quer sejam formais ou informais. A Lei também propõe a outorga aos Mestres da Cultura do título de Notório Saber em artes e cultura populares.

No âmbito desta Política e da articulação da Uece com a Secult(Ce), institui-se a Resolução nº 1194/2016, que dispõe sobre a Outorga do Título de Notório Saber em Cultura Popular. Este título é concedido a pessoas detentoras ou não de título acadêmico, de graduação e de pós-graduação desde que tenham comprovada uma destacada experiência e produção em, pelo menos, uma da linguagens ou áreas da arte e da cultura popular.

No próximo dia 10 de dezembro, a Uece realizará mais uma cerimônia de entrega do título de Notório Saber em Cultura Popular a 25 mestres e mestras em áreas diversas de expressão, como literatura de cordel, teatro de bonecos, cultura indígena, artesanato, música, dança, luta corporal xilogravura, cultura afrobrasileira, arte circense dentre outras. A lista de homenageados (as) abrange mestres e mestras residentes em várias regiões do estado, que expressam e tornam mais conhecido o saber do povo ao resguardar tradições e manifestações.

Na análise de mérito para a concessão do título foi identificada a qualificação dos(as) candidatos(as) por meio de avaliação emitida pela Pró-Reitoria de Extensão – PROEX, com apreciação e aprovação, por unanimidade, pela Câmara de Extensão (CAMEX) e posterior apreciação, também com parecer favorável unânime pelo CONSU.

A PROEX recebeu as 25 solicitações de mestres(as) que já são detentores(as) do título de Tesouro Vivos da Cultura, pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (SECULT), e que contam, desde então, com reconhecimento institucional recebendo um subsídio no valor de um salário mínimo mensal, como auxílio para a manutenção de suas atividades e para a transmissão de seu saberes e fazeres.

Este reconhecimento fortalece as políticas de patrimônio imaterial do Estado do Ceará, amplia a interlocução da Uece com o povo cearense e contribui para a salvaguarda das identidades que constroem nossa cearensidade. Que essa política avance para outros patamares de inclusão pluriepistêmica, em que se some a incorporação desses(as) detentores do saber ao corpo universitário.

Conheça os mestres e mestras da cultura a serem diplomados dia 10 de dezembro:

Pajé Barbosa Pitaguary

Raimundo Carlos da Silva

Cultura Indígena | Pacatuba

 

Zilda Maria Torres Guerreiro

Teatro de Bonecos | Itapipoca

 

Pádua de Queiroz

Antônio de Pádua Borges de Queiróz

Literatura de Cordel | Baturité

 

Lourdes do Coco

Maria de Lourdes Ferreira Alves

Dança do Coco, Maneiro-pau | Solonópole

 

Josenir Lacerda

Josenir Alves de Lacerda

Literatura de Cordel | Crato

 

Mestra Carla Mara

Carla Mara Henrique Silva

Capoeira | Fortaleza

 

Mestre Cícero

Cícero Ribeiro de Menezes

Banda Cabaçal | Missão Velha

 

Ana da Rabeca

Ana Soares de Sá Oliveira

Rabequeira | Umari

 

Augusto Bonequeiro

Augusto César Barreto de Oliveira

Teatro de Bonecos | Fortaleza

 

Klévisson Viana

Antônio Clévisson Viana Lima

Literatura de Cordel, desenho e gravura | Fortaleza

 

Francorli

Francisco Correia Lima

Xilogravura | Juazeiro do Norte

 

Mestre Lula

Luiz Carlos Silva

Capoeira | Fortaleza

 

Pai Neto Tranca Rua

Miguel Ferreira Neto

Umbanda | Fortaleza

 

Mestre Wlisses

Wlisses Ferreira Lima

Mestre de Capoeira | Fortaleza

 

Mestre Galdino

Luiz Galdino de Oliveira

Mateiro | Crato

 

Mestra Fanca

Francisca Mendes Marcelino

Contadora de história e Bordadeira | Juazeiro do Norte

 

Mestre Dodô

Francisco Joventino Da Silva

Reisado | Juazeiro do Norte

 

Edson Brandão

Edson Pinto Brandão

Circo | Russas

 

Raimundo Claudino

Raimundo Claudino Amaral

Cultura Junina | Tabuleiro do Norte

 

Mestre Chico Ceará

Francisco Gilberto da Silva

Capoeira | Barbalha

 

Mestre Nena

Francisco Gomes Novaes

Bacarmarteiro e Mateu de Reisado | Juazeiro do Norte

 

Maria Izabel

Maria Izabel dos Santos

Rezadeira e Mezinheira | Juazeiro do Norte

 

Dadá Leitão

Francisca Maria Elói Leitão

Artesanato Bordado a Mão | Quixeramobim

 

Círio Brasil

Círio dos Santos Brasil

Circo de lona Tradicional | Fortaleza

 

Mestre Vamirez

Vamirez Argemiro Gonçalves

Santeiro | Senador Pompeu