Bacurau frente ao avanço imperialista

12 de dezembro de 2019 - 09:51

Henrique Tahan Novaes


O filme começa dizendo que retrata Bacurau daqui a alguns anos. Bacurau é a típica cidade de Pernambuco ou de um país que não muda e que articula o arcaico com o moderno.

Bacurau “daqui a alguns anos” é um povoado que continua pobre, a escola segue caindo aos pedaços, as casas simples, o ônibus escolar quebrado num canto, o povo passa fome, a represa está desativada, não tem indústria e tem muita prostituição. Mas a cidade tem as mais avançadas das novas tecnologias, carro de som de altíssimo nível, carro de som super tecnológico do prefeito e todos têm celular. A escola tem com pouquíssima infraestrutura, mas o professor tem aparelhos sofisticados para usar com os alunos.

Nas escolas brasileiras “daqui a alguns anos”, talvez até terá computador, mas não funciona, tem rede de internet, mas essa sempre cai ou é lenta. Será que vão ter laboratórios e papel higiênico?

Se Bacurau representa a tendência das cidades brasileiras, parece que os diretores do filme veem a possibilidade de auto-organização popular armada, para resistir ao avanço do domínio exterior, no caso o imperialismo norte americano? A cidade está desaparecendo, saindo do mapa. O invasor estrangeiro, não se sabe direito o que quer ali, provavelmente as terras daquele povoado. Seus aliados, o sul e o sudeste, e depois, como será possível ver na cena final, o prefeito da cidade, outro vendido dos gringos.

Com o desenrolar do filme o sul e sudeste deixam de fazer a mediação para a dominação estrangeira, pois são assassinados pelos estrangeiros, não são mais necessários. Curiosa a cena que os do Sul se acham brancos e aliados dos estrangeiros, mas se parecem no máximo com os mexicanos pouco brancos, considerando o padrão “Branca de neve, tão branca quanto a neve”.

O filme mostra um prefeito ausente, que só aparece nas épocas de campanha. Mas o povo tem uma técnica sofisticadíssima de aviso quando ele ou qualquer outro forasteiro chega e todos se escondem quando o prefeito se aproxima. Quando aparece, ele fica “falando para o vento”, mas captura uma das cidadãs de Bacurau, uma prostituta.

Bacurau resgata a experiência do cangaço de Lampião e do cinema novo de Glauber Rocha, principalmente o Glauber de Deus e o Diabo na Terra do Sol, onde retrata as Ligas Camponesas do Nordeste e de Terra em Transe, que retrata o golpe de 1964. Lembremos que Lampião, por onde passava, prendia os prefeitos e soltava os ladrões! Era o grande e “violento” líder que trazia a esperança de um futuro melhor.

O Jornal O Estadão considerou o filme “muito violento”. Ué, mas o Brasil não é um país violento desde 1500? Não somos o país que mais mata gente no campo? Trans? Que extermina o povo pobre das periferias, somando cerca de 60 mil mortos por ano. Que mata índios em pleno século XXI? Que está em 7º em termos de Concentração de Renda.

O justiçamento no filme é feito por Lunga, uma espécie de Antonio Conselheiro, misturado com Lampião e João Teixeira, que se junta a “Pacote” e todo o povo para salvar a comunidade, que está prestes a ser dominada.

Se por um lado o filme atualiza a forma de dominação no Brasil, onde a burguesia é dependente e subordinada ao capital internacional, principalmente ao capitalismo norte-americano (o filme foi feito antes da fajuta eleição de Bolsonaro, que anexou o Brasil aos EUA), por outro lado “esconde” outros polos do imperialismo, como o chinês, russo e alemão.

Talvez a questão mais importante trazida pelo filme é a possibilidade da resistência organizada ao avanço do domínio estrangeiro. Cheguei a pensar que o filme retratava a Venezuela, com suas milícias populares organizadas para resistir ao avanço do imperialismo. A resistência do povo de Bacurau é armada e “violenta”, sem nenhuma conciliação ou pacto com o inimigo, que é nitidamente derrotado pelo povo organizado. Seu líder principal é enterrado vivo, os demais membros são estraçalhados e suas cabeças decepadas.

A Resistência do povo de Bacurau, extremamente organizado, combina várias técnicas. Seja pelo uso das novas tecnologias – um informante da única entrada da cidade avisa quando qualquer forasteiro, inclusive o prefeito. Seja pelo armamento e técnicas de guerrilha usadas em alguns momentos da história brasileira. Essas ações nos fazem lembrar a resistência da “Comuna Mística” de Belo Monte-Canudos, que derrotou o exército brasileiro diversas vezes, até que se instalou na região uma guerra desproporcional que liquidou os seguidores de Antônio Conselheiro. Também nos fazem lembrar o Quilombo dos Palmares, que no caso só tinha armas rústicas, mas mesmo assim demorou 50 anos para ser liquidado definitivamente pela expedição de Domingos Jorge Velho.

Kleber Mendonça vem se destacando como um dos principais cineastas brasileiros da geração do período 2000-2020. Já nos brindou com os filmes O Som ao redor, Aquarius, Recife frio. E agora, ao lado de Dornelles, Bacurau. O que é o Brasil para Kleber Mendonça? Uma sociedade de base escravocrata e colonial, que pode até se modernizar, ter tratores, carros, computadores e celulares da última geração, mas que repete o passado, mesmo com as novas tecnologias. Os antigos senhores de escravo, vão para a cidade especular, construir prédios e bairros, reproduzindo na sua essência os traços do passado. Mas este Brasil gera líderes como Zumbi, Antonio Conselheiro, João Teixeira, Marielle e Lunga que ao lado ou a frente do povo organizado, podem nos levar a emancipação.