Sobre o Racismo Tupiniquim

20 de janeiro de 2021 - 11:35

Sobre luta de classes, política e racismo tupiniquim

Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá
Cansado de apanhar

(Bi Ribeiro/ Herbert Vianna/ Joao Barone)


Não parece absurdo pensar que as crianças esperem do progresso capitalista a solução para todos os problemas da vida humano-social. O pensamento infantil, com sua peculiar puerícia, geralmente acredita que a fome, a violência policial, a moradia, o racismo, entre outras tantas demandas humanas, naturalmente podem ser resolvidas pelo progresso social. É possível que as crianças acreditem ou sonhem que qualquer pessoa tenha o direito de ir, pelo menos uma vez na vida, à Paris, Canoa Quebrada, Carolina, Machu Picchu, Foz do Iguaçu, ou qualquer outro lugar do mundo.


Ledo engano!


O marxismo clássico demonstra que o mundo tem preponderância sobre a vontade e os sonhos das pessoas, independente que sejam adultas ou não. Apenas a revolução socialista sob o modo de produção do trabalho associado abrirá as portas para que os frutos do progresso possam ser partilhados entre todas as pessoas.


Com o aporte do marxismo clássico, torna-se mais flagrante a impossibilidade de o capitalismo resolver problemas como, por exemplo, o racismo. Esse instrumento de análise permite que se observe o problema como ele realmente é, pois, desse modo, se respeita os elos imanentes de como a problemática objetivamente nasce e se desenvolve. Para o caso do racismo que se pratica sob o manto do capitalismo atrasado brasileiro, há de se analisar os elementos que contornam essa prática.


Mesmo sem as condições de aprofundar filosoficamente a questão nesta pequena matéria, não é possível desprezar o modo como o capitalismo atrasado brasileiro foi administrado nas últimas décadas. A aparelhagem estatal brasileira foi gerenciada, de início da década de 1990 até 2018, por uma burocracia com inclinação para a chamada esquerda.


Antes de continuar, necessitamos de uma pequena digressão. Precisamos alertar que os conceitos de esquerda e direita apenas foram relacionados, respectivamente, a política progressista e reacionária no contexto da Revolução Burguesa. A etnografia de boa cepa, até onde os dados paleontropológicos alcançam, nos diz que a maioria dos seres humanos primitivos eram destros. Não há, no entanto, uma justificativa clara para esta constatação que, por sua vez, é dada pelo modo como os sujeitos humanos primitivos usavam suas ferramentas de trabalho. Apenas com a posição que os jacobinos – identificados como progressistas – se sentavam no parlamento francês, ou seja, à esquerda do salão de reuniões, o termo esquerda passou a ser identificado com as bandeiras político-progressistas.


Sob o amparo dessa digressão, podemos considerar que mesmo havendo enormes diferenças entre tucanos e petistas e, embora que cada um tenha seu modo próprio de gerenciar o Estado capitalista periférico brasileiro, ambos partidos almejavam tocar os ventos de um progresso burguês. Seguindo as motivações de tal progresso, tucanos e petistas, cada um a seu modo específico, gerenciou o capital de 1994 a 2018. Nos dois últimos anos dessa série, o representante do executivo não foi um político ligado diretamente nem a um tampouco a outro partido. Não obstante, sempre teve o apoio ou de tucanos ou de petistas. O que, para efeitos dessa matéria, redunda em diferenças dispensável.


Essa inclinação para o progresso burguês, por uma variação de fatores contingenciais e debaixo dos efeitos da crise estrutural do capital, foi substituída em 2019 por uma administração alinhada politicamente à direita reacionária.


Se há, como admitido, distinções entre tucanos e petistas, entre estas duas agremiações e a reacionária direita que assume o poder estatal em 2019 as diferenciações são enormes. Tanto estes quanto aqueles, no entanto, têm em comum a importantíssima tarefa de gerenciar o capital em crise aguda. Claro, mas vale insistir, cada um – tucanos, petistas e reacionários de direita – administram o capitalismo periférico brasileiro ao seu modo.


Sobre a questão do racismo, o que nos importa aqui, é relembrar que há nos modelos progressistas e reacionários de comandar o Estado uma interessante semelhança, ou, no pior dos casos, terrível aproximação; mas há também uma destacada distinção.

Para os tucanos e petistas, que se felicitam em se inclinar para o esquerdismo, bem como para os reacionários, que se alegram em se declararem direitistas, no Brasil não existe pessoas racistas. Esta proximidade se explica, contraditoriamente, pelo distanciamento que progressistas e reacionários apresentam. Enquanto aqueles consideram que no país existe racismo, ao mesmo tempo, não se declaram racistas, nem apontam quem são os racistas. No máximo de suas elucubrações, alegam que os direitistas são racistas, eles próprios não. Já a turma que se locupleta com a alegação de ser de direita, diz que no Brasil não há racismo, portanto, também não existem pessoas racistas.

Em resumo: para progressistas e reacionários, no Brasil, não existem pessoas racistas. Embora que o primeiro grupo afirme a existência do racismo; este, contudo, é sem racistas, pois ninguém se declara racista. Ambos os grupos estão de mãos dadas quando se precisa enfrentar concretamente o racismo, dado que sem pessoas racistas, não pode haver racismo. No primeiro caso há uma abstração vazia e no segundo uma mentira descarada, mas bem aparelhada à coerência invertida da direita reacionária.


O resultado factual é que o racismo nunca saiu das ruas, das abordagens policiais, das piadas de mesa ou salão, enfim, das relações cotidianas. Para comprovar esta lástima, basta verificar os índices de mortes entre crianças, jovens e adolescentes de cor negra. Basta lembrar os incidentes envolvendo as conhecidas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e os moradores das favelas cariocas. E mesmo que alguém, considerado bem-intencionado ou não, queira defender que as políticas sociais implantadas pelos partidos inclinados para a esquerda temos a dizer que, independente da eficácia das necessárias políticas compensatórias, o chão concreto do dia a dia de mulheres e homens com traços na pele que marquem sua descendência africana continuou materialmente inalterado. Ou seja, mesmo que a política reformista implemente ações que tenham alguma reverberação ideológica, o cotidiano de negros e negras continuou, como infelizmente sempre foi, extremamente racista.


De fato, com a assunção da direita reacionária ao poder estatal, o efeito ideológico se inverte, pois se desconstrói a necessidade de tais medidas reformistas compensatórias. E isso faz com que o cotidiano perca aquela abstração vazia que dizia existir racismo sem racistas. O que põe por terra a comemoração de um simbolismo identitário que apenas existiu na esfera ideológica, jamais na vida concreta de quem anda nas ruas das cidades brasileiras, sobretudo em suas periferias.


Como palavras finais, temos a dizer que não há como acabar com o racismo sob o manto da propriedade privada. Isso não quer dizer que não tenhamos que combater toda e qualquer prática racista. Penso que esta pequena matéria tem a intenção de denunciar uma artimanha racista empregada na esfera ideológica que, por sua vez, é muito bem utilizada pela idiossincrasia do atraso da elite racista brasileira.


A elite endógena é incapaz de pensar por si só; mas em relação ao racismo, ela, independente de suas inclinações políticas, por não conseguir ver que o racismo brasileiro está incrustado em seu desenvolvimento econômico, cria um racismo particularmente tupiniquim. Ele, de um lado, é disfarçado, pois mesmo que se admita sua existência, não se aponta os racistas; de outro, nem se quer admite-se a existência de racismo, logo, não há racistas.


Como a ideologia dominante é quem ganha o corpo das massas, a rua, o dia a dia o cotidiano de quem traz na pele a cor negra é repleto de atos racistas de toda ordem e efeitos.


Apenas com o fim da propriedade privada, não por meio de reformas pontuais, estará aberta a possibilidade para os seres humanos, independente de raça, gênero, idade, peso, preferência sexual, país de origem, entre outras especificidades, desfrutem da materialidade coletiva. Como diria Marx, “a cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”!