ARTIGO: “Os Filhos de Todas as Bombas”, de Camila Costa, publicado em O Povo de 28 de setembro.

28 de setembro de 2015 - 15:31

28 de setembro, 2015

 

Segue artigo de Camila Costa, intitulado “Os Filhos de Todas as Bombas”, publicado no jornal O Povo de 28 de setembro.

Pode também ser acessado em < http://www.opovo.com.br/app/opovo/mundo/2015/09/28/noticiasjornalmundo,3510954/os-filhos-de-todas-as-bombas.shtml >

 

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Os Filhos de Todas as Bombas

 

Em 2003, prestes a invadir o Iraque, os Estados Unidos (EUA) iniciaram testes com uma bomba não-nuclear de 9,5 toneladas, capaz de causar destruição no raio de até 1 quilômetro em redor de seu ponto zero. Composta por 80% de TNT, foi complementada com 20% de alumínio, aumentando sua capacidade de destruição em pelo menos 18%. Era a “Mãe de Todas as Bombas” – ou MOAB, sigla para “Massive Ordnance Air Blast” (“Explosão Maciça de Munição Aérea”). Imagens dos dois testes realizados com o artefato foram amplamente divulgadas pela mídia global logo antes da invasão, com o claro propósito de desencorajar nacionais iraquianos e qualquer país disposto a se juntar em sua defesa no enfrentamento aos (EUA) e seus aliados da OTAN. Além dos dois artefatos testados, foram produzidos outros 15. Declaradamente, nenhum foi utilizado.

 

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Teste do Massive Ordnance Air Blast (MOAB), realizado pelos Estados Unidos

 

O epíteto “Mãe de Todas as Bombas” antecipava as consequências da explosão de um dispositivo com poder de destruição de 11 toneladas de dinamite. A comunidade internacional conjeturava sobre o quanto de desgraça se alimentaria e surgiria a partir do ódio, medo, e insegurança causados pelo uso da MOAB; quantos novos extremistas, homens-bomba, mujahedeens se juntariam à resistência ao ver seus familiares transformados em meros números contabilizados como “danos colaterais”. A certeza de que a utilização da MOAB geraria uma prole com capacidade e disposição de buscar uma justiça que a comunidade internacional lhes negava ao ignorar o assassinato de milhares de iraquianos, afegãos, somalis, sudaneses, sírios e iranianos, dentre tantos outros povos eurasianos, médio-orientais e africanos, não impediu a ostentação dos destroços que a nova bomba seria capaz de deixar pelo caminho.

 

Logo a Rússia desenvolveu o Aviation Thermobaric Bomb of Increased Power, a que deu a alcunha “Pai de Todas as Bombas” (FOAB, sigla para “Father of All Bombs”), em clara resposta à MOAB. Um primogênito com capacidade de destruição quatro vezes maior que sua “mãe”: 44 toneladas de dinamite. Produziu 100 unidades.

 

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Teste do Aviation Thermobaric Bomb of Increased Power (FOAB), realizado pela Rússia

 

Há, contudo, efeitos menores e mais danosos da MOAB: seus filhos não tomam necessariamente forma de um novo artefato explosivo capaz de multiplicar o dano causado por ela. Nas duas últimas décadas, sobretudo nos últimos cinco anos, um novo fenômeno, mais cruel e aterrador, emergiu nos conflitos do Oriente Médio, da Eurásia e da África. Não tratamos mais de homens-bomba. As vítimas inocentes do conflito, crias da MOAB, são meninos-soldados e crianças-bomba, alguns de até 5 anos de idade, que têm sido doutrinados para o suicídio em explosões de mercados, praças, masjids e shopping centers. Esta estratégia surgiu no conflito no Iraque, onde o emprego de crianças como instrumentos de guerra logrou atingir os alvos pretendidos. São convencidas por seus recrutadores de que, como a explosão vai matar estadunidenses e seus aliados, Alá lhes poupará a vida. Pensam-se heróis. Seus pais sabem-lhes vítimas, mas nada podem fazer frente às ameaçadoras tropas ocidentais ou aos insurgentes.

 

 No primeiro semestre de 2015, o Boko Haram utilizou crianças-bombas em pelo menos duas ocasiões comprovadas, na Nigéria: em junho, uma garota de 17 anos se explodiu em uma estação de ônibus, em Madiguri, matando 20 e deixando outros 50 feridos; no dia seguinte, um garoto de 12 anos, em um mercado na vila de Wagir, deixou 30 feridos e 10 mortos. Ambos morreram nos atentados. 


Apenas na última década, autoridades afegãs apreenderam mais de 250 crianças que estavam sendo treinadas para o suicídio. Foram escolhidas simplesmente por serem mais acessíveis e não despertarem maiores suspeitas das autoridades ao circular pelos populosos centros onde conduzem os ataques. As madrassas, escolas religiosas, servem como campos de recrutamento.

 

A “Mãe de Todas as Bombas” exibe agora orgulhosa, embora dissimulada, sua prole. Não era apenas uma bomba. Era o bater das asas de uma borboleta cujas ondas geraram meninos-soldados, crianças-bombas, o extermínio sudanês, os escombros afegãos, o caos paquistanês, as agitações iranianas, a sangria síria e a crise dos refugiados que agora atinge a Europa. Impossível pensar estes eventos isoladamente. Apenas reconhecendo e encarando a origem da atrocidade seremos capazes de começar a discutir a solução para a crise nossa de todos os dias.

 

 Camila Alves da Costa é Mestre em Estudos de Defesa e

pesquisadora do Observatório das Nacionalidades