Diario de Quarentena – LAPPS/UECE

26 de agosto de 2020 - 17:06

Continuando os relátos de pessoas que participam/participaram da comunidade ueceana (feclesciana), temos novamente o professor Deribaldo Santos, onde escreveu um texto intitulado “Ode à Nega Tereza” .

Ode à Nega Tereza

Eu juro por Deus
Se você voltar
Eu vou me regenerar
Jogo fora o meu chinelo
Meu baralho
E a minha navalha
E vou trabalhar.
(Jorge bem)


Desde que começou esse pandemônio, sob a junção de fatores estruturais e
acidentais, as últimas semanas têm sido as piores para mim.
Perdemos, entre os produtores de arte, o poeta Arievaldo Viana e o
cantor/compositor Evaldo Gouveia. Este, a meu modo de entender, nunca teve a
justa medida da crítica e mesmo entre os artistas da chamada Terra da Luz nunca
foi devidamente prestigiado. Aquele, por ter como manifestação o cordel, nunca
ocupou qualquer privilégio midiático.
Entre os anônimos, os números de mortos não param de aumentar.
Perdeu-se o anonimato, LAMENTAVELMENTE, a morte do menino Miguel que caiu do nono
andar do prédio onde sua mãe negra prestava serviços domésticos para uma patroa
branca. O garoto de cinco anos, enquanto a mãe passeava com o cachorro da patroa,
deveria estar aos cuidados da dona do cão.
Como Miguel, saiu do anonimato também a violenta morte da George Floyd que foi
estrangulado por um policial nos Estados Unidos. Essa tamanha covardia nos fez
lembrar Pedro Gonzaga, que há dois anos e dois meses também morreu ao levar uma
gravata de um segurança em um shopping no Rio de Janeiro.
Na lastimável moldura da condução política da pandemia do Covid 19 no Brasil,
muitas famílias e diversas pessoas singulares sentem suas perdas particulares.
Perdi de meu ciclo de proximidade Francisco, filho de Irmã Pretinha e Tereza do
Acarajé. Ambos anônimos, pobres e negros como Miguel, George e Pedro.
Ao me dirigir aqui diretamente à minha Tereza, evoco todas as perdas anônimas.
A conheci na entrada da Ponte Metálica antes das inúmeras e destrutivas
intervenções estatais que o espaço foi submetido. Ela montava ali seu tabuleiro
de acarajé.
Ao falar de Tereza não quero compartilhar minha dor com ninguém.
HOJE a dor é de grande dimensão e não precisamos distribuí-la pois todos têm
perdas ao redor. Cada um sente a sua!
Melhor lembrar do sorriso da nega.
Quando sorria com a costumeira fartura, deixava à mostra uma pequena separação
entre os dois incisivos centrais.
Era a abertura ao seu espírito alegre, falante, corajoso e feliz. Todos podiam
entrar.
Essa mulher nunca abriu mão de viver.
Sempre optou pela vida.
E assim partiu!
Sabia que diante da pandemia, seu corpo frágil não resistiria.
Preferiu enfrentar, com toda coragem que sempre lhe coube, a vida.
Partiu, mas sua abertura à vida fica!

Deri
Santo Antônio de 202XX