Tantas léguas a nos separar
28 de maio de 2013 - 14:27
Não se trata nem de debater a punição pelos crimes da ditadura. O poder público ainda mantém, pelo contrário, homenagens aos generais ditadores
A última semana foi tão turbulenta na política cearense que a coluna deixou de destacar momento que, no âmbito nacional, é marco na história brasileira. Na terça-feira passada, a Comissão da Verdade começou a redefinir a relação do Brasil com a ditadura militar. No balanço de um ano de trabalhos, o colegiado confirmou que assessores diretos dos presidentes ditadores estavam na linha de frente das ações de tortura e extermínio de opositores. E, diante do recorrente argumento de que a violência de Estado foi reação ao “terrorismo” de esquerda, a comissão constatou que a tortura já era sistemática logo após o golpe de 1964, antes da luta armada pensar em se organizar. Também foi revelado que, em pleno período democrático, a Marinha mentiu ao então presidente Itamar Franco a respeito de mortes ocorridas durante o regime dos generais – coisa de 12 mil páginas de documentos teriam sido sonegadas. Diante das constatações, os membros da comissão decidiram recomendar que os suspeitos de crimes durante a ditadura sejam responsabilizados judicialmente. Impossível não remeter ao que ocorreu na Argentina na semana anterior, quando o ex-ditador Jorge Videla morreu na prisão, aos 87 anos. Incontáveis léguas separam os dois vizinhos no trato com o horror político de que foram vítima.
Nem vou entrar no mérito sobre a validade ou não da autoanistia que o regime se concedeu, ou sobre a pertinência de se abonar crimes de Estado, como a tortura – considerada imprescritível e inanistiável em tratados internacionais. Há de se considerar que, à época, a anistia foi uma vitória. Caberia mesmo discutir a pertinência de se aproveitar a nova correlação de forças para se reverter aquilo pelo que se lutou no passado – com o risco de, quando a balança política voltar a mudar, o assunto sofrer nova guinada. O assunto é complexo, mas se está ainda distante dessa discussão: o Brasil ainda avança capengamente no trabalho preliminar, para passar a limpo a própria história. A narrativa dos anos de chumbo ainda é repleta de lacunas e silêncios – que ecoam, todavia, de modo ensurdecedor. A reconstituição da memória permanece incompleta quase 30 anos depois da redemocratização. Em nome dessa reconciliação, não foi feito o devido acerto de contas, nem ao menos o exame de consciência necessário sobre violência política do Estado.
O esquecimento é, efetivamente, parte dos processos de reconciliação nacional após momentos críticos. Sobretudo em sociedade com o perfil do Brasil, que tende a evitar conflitos em nome de harmonia e paz muitas vezes fingidas. Contudo, os vazios na memória sobre crimes estatais se constituem, eles próprios, formas de violência intoleráveis.
O ESTÁGIO ELEMENTAR
Entretanto, a dívida do Brasil com sua história permanece em estágio ainda mais elementar. Não se trata nem de debater a punição pelos crimes cometidos por agentes de Estado com aparato institucional. O poder público ainda mantém, pelo contrário, homenagens aos generais ditadores. Em Fortaleza mesmo persiste sem número de órgãos públicos que ostentam os nomes dos presidentes do período militar. O Governo do Ceará tem sede alguns metros distante de monumento ao primeiro dos líderes do regime militar. Isso no palácio que leva o nome de Abolição, como intenção de apologia da liberdade. Não proponho, evidentemente, que se ponha abaixo do mausoléu de Castelo Branco. Mas há de se resignificar o espaço de modo a fazer jus à memória do período e não permanecer como afronta às vítimas dos anos de chumbo – coisa, aliás, que muitos acreditam que o próprio Castelo tenha se tornado. Afinal, não são poucos os indícios que contribuem para a tese de que o estranho acidente aéreo teria agradado aos representantes da então ascendente linha dura.
Esse é apenas o caso mais gritante. São inúmeras as homenagens que permanecem aos ditadores, como agressão que persiste à liberdade, à democracia e aos direitos humanos. E pouco avançam as iniciativas legislativas que tentam reverter esses absurdos – embora batismo de ruas, órgãos e espaços públicos sejam as coisas que os parlamentares mais sabem e gostam de fazer.
Jornal O POVO Fortaleza Ceara 28.05.2013