Entrevista com Zygmunt Bauman: “É muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos”

19 de maio de 2014 - 08:53

“O face a face obriga a te confrontar com a diferença. Administrá-la com os sentimentos, elaborá-la.
Um efeito colateral dessa dissociação é que se perdeu a vontade do trabalho ‘bem feito’ também
nas relações. Perdemos a capacidade de nos relacionarmos com esmero.” – Zygmunt Bauman

 

Em entrevista para o jornal espanhol La Vanguardia (17/05/2014), filósofo polonês Zygmunt Bauman fala sobre consumo, felicidade e relações humanas. A tradução é de André Langer para o IHU.

 

 La Vanguardia: Gostaríamos de saber mais de você que de suas ideias, embora não sei se são indissociáveis. É muito ou pouco consumista?

Zygmunt Bauman: Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo… Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade… mas os desejos são infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas.

 

La Vanguardia: Nas manhãs de domingo as famílias britânicas não vão à missa, mas ao centro comercial. É esse o nosso novo templo?
Zygmunt Bauman: Sou muito cuidadoso na hora de comparar consumismo e religião. A religião é uma transgressão, te leva para além da tua vida. Na América, antes, a tradição era que se reunisse a família ao redor da mesa para comer e conversar. Nos últimos anos, apenas 20% das famílias fazem isso!

 

La Vanguardia: Rompeu-se essa ideia nuclear de família?
Zygmunt Bauman: Sim, era uma interação física. Agora, ao contrário, cada um pega a sua comida, senta-se na frente do computador e come. O ser humano de hoje passa sete horas e meia diante de algum tipo de tela. Se a interação com alguém na rede não te interessa, aperta um botão e adeus.

 

La Vanguardia: Nas relações humanas não é tão fácil desconectar.
Zygmunt Bauman: O face a face obriga a te confrontar com a diferença. Administrá-la com os sentimentos, elaborá-la. Um efeito colateral dessa dissociação é que se perdeu a vontade do trabalho “bem feito” também nas relações. Perdemos a capacidade de nos relacionarmos com esmero.

 

“A liberdade é mais uma ideia do que um exercício (…)”

 

La Vanguardia: Pertencemos à espécie do homo eligens, “o animal que escolhe”, lembramos em A riqueza beneficia a todos? [nova obra de Bauman a ser publicada pela Zahar em 2015]. Se te mandam, escolhem por ti; se escolhes, renuncias. Com o que Bauman fica: mandar sobre tua vida – logo, escolher – ou obedecer?
Zygmunt Bauman: Escolhe se te deixam. A liberdade é mais uma ideia do que um exercício – que também – porque só sou livre na medida em que posso agir sobre a minha vida sem interferir nas liberdades alheias.

 

La Vanguardia: Qualquer coisa que alguém escolhe modifica o contexto.

Zygmunt Bauman: Porque redefine a liberdade de outros. O importante é ter a oportunidade de exercê-la. Neste momento, só há um grupo muito reduzido de homens livres e uma grande massa que fica fora do jogo.

 

La Vanguardia: As classes médias perdem terreno e parte delas estão se convertendo em proletariado, uma classe que você chamou de “precariado”.
Zygmunt Bauman: Lamento não ter lido o último livro de Thomas Piketty [Capital do século XXI, a ser lançado pela Intrínseca no segundo semestre de 2014] antes de escrever o meu, porque cita coisas interessantes. Por exemplo, que os direitos humanos são algo que herdamos da Revolução Francesa. Nosso horizonte – que marca a distribuição da riqueza – deveria ser o bem comum. Os ricos agem com toda essa riqueza – a maioria a herdaram – com absoluta impunidade. Acreditam que eles nunca poderão falir.

 

“É muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos.”

 

La Vanguardia: As 85 pessoas mais ricas do mundo acumulam uma riqueza equivalente aos quatro bilhões de pessoas mais pobres. Qual é a pessoa pobre mais feliz que conheceu e a rica mais infeliz com que já se encontrou?
Zygmunt Bauman: Oh! É muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos.

 

La Vanguardia: Bom, então comecemos pelos que não têm nada.
Zygmunt Bauman: Uma pessoa pobre que consegue tomar café da manhã, almoçar e, com sorte, jantar… é automaticamente feliz. Nesse dia conseguiu seu objetivo. O rico – cuja tendência obsessiva é enriquecer mais – costuma meter-se numa espiral de infelicidade enorme. A grande perversão do sistema dos ricos é que acabam sendo escravos. Nada os sacia, entram em colapso, uma catástrofe!

 

La Vanguardia: Diz que vivemos a “síndrome da impaciência”. Poderemos fugir do desastre com instrumentos como o movimento Slow?
Zygmunt Bauman: O problema não está no ritmo das coisas – embora o movimento Slow me parece muito interessante –, mas em que deveríamos mudar integralmente o nosso modelo de vida. No meu país, 50% dos alimentos acabam no lixo antes de retirá-los das embalagens! Estamos acabando com a sustentabilidade do planeta, somos uns predadores.

 

“(…) A vida não é um campeonato de futebol (…)”

 

La Vanguardia: Você participou da Segunda Guerra Mundial, combateu com o Exército polonês, trabalhou para os serviços de informação militares… Qual foi o pior momento da sua vida e como conseguiu recuperar-se?
Zygmunt Bauman: Ao final, a vida não é um campeonato de futebol, onde podes dizer “olha, aquele jogo foi o pior”. Mas lhe responderei com uma anedota que pode parecer evasiva, mas não é. Certa vez, o grande poeta Goethe – quando tinha quase a minha idade – foi entrevistado por Eckermann. “Diga-me, você teve uma vida feliz?”, perguntou-lhe. E Goethe respondeu: “Pois, olhe, sim, tive uma vida feliz. Pois bem, não me pergunte se tive uma só semana feliz”.

 

La Vanguardia: Então, a felicidade não é a soma de momentos de felicidade, como dizem alguns?

Zygmunt Bauman: Não, a felicidade é o gozo que dá ter superado os momentos de infelicidade. Ter conseguido transformar teus conflitos, porque, sem conflitos, as nossas vidas, a minha vida, teriam sido uma verdadeira chatice.

 

Fonte: http://fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16%2C234