A Segurança Pública e o Legado da Copa
1 de julho de 2014 - 10:06
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Terminada a Copa do Mundo de 2014, realizada em terras brasileiras, várias são as áreas onde é possível agora realizar o balanço do ocorrido, e especialmente do chamado “legado da Copa”, ou seja, dos resultados que de alguma forma terão efeitos a médio e longo prazo no país.
Se dentro de campo o resultado foi decepcionante, resultando em um pouco merecido e ainda menos comemorado 4º lugar para a seleção canarinho, fora de campo é forçoso admitir que as coisas saíram muito melhores do que as previsões catastrofistas de boa parte dos analistas políticos e formadores de opinião, que expuseram suas críticas no período anterior à Copa em generosos espaços midiáticos. Desde as manifestações de junho de 2013, que anteciparam e coincidiram com a Copa das Confederações, as manifestações contrárias à realização da Copa no Brasil ganharam fôlego, e se misturaram com a crítica mais incisiva dos que criticavam a incapacidade do Estado brasileiro viabilizar as condições necessárias para a realização do evento nas áreas de infraestrutura e segurança.
Iniciada a Copa, foi possível perceber que os defensores do #naovaitercopa eram muito pouco representativos do sentimento nacional de mobilização em torno de um evento que atraiu fãs e deu visibilidade ao país no mundo inteiro. Estádios lotados e festas ao ar livre com milhares de pessoas, brasileiros e estrangeiros, rapidamente levaram ao isolamento dos críticos mais radicais do evento, facilitando o trabalho das polícias militares para garantir o acesso aos estádios e a manutenção da segurança no período da Copa. Surpresa ainda maior tiveram os defensores do #imaginanacopa, quando começaram a aparecer as manifestações de torcedores e jornalistas internacionais com fartos elogios à organização, aos estádios, à segurança e à mobilidade, garantindo a circulação e o acesso de todos aos jogos de forma tranquila. O sucesso da organização, aliado ao bom futebol praticado pela grande maioria das seleções presentes à Copa, reforçaram a ideia de que estávamos diante da #copadascopas.
Problemas ocorreram, como a invasão de torcedores sem ingresso em uma ou outra partida, e a grande quantidade de ingressos nas mãos de cambistas, em esquema com a participação de pessoas ligadas à FIFA, desbaratado pela ação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em articulação com a Polícia Federal. A ação das polícias militares ocorreu de forma correta na grande maioria dos casos, na realização do policiamento ostensivo. Problemas apareceram quando grupos de 200 ou 300 manifestantes tentaram bloquear vias e acessos aos estádios, e em alguns casos revelou-se mais uma vez o despreparo das PMs para atuar em situações de conflito, se excedendo no uso da força. Mas foram casos isolados, frente a um saldo bastante positivo.
Não tendo ocorrido o caos previsto por alguns analistas, que erraram tão feio quanto os comentaristas esportivos que vaticinavam o sucesso da Seleção Brasileira rumo ao hexa, resta avaliar o que ficou como legado do evento na área da segurança pública. Ficou clara, por exemplo, a capacidade de coordenação exercida pela Polícia Federal, que garantiu o planejamento e a atuação coordenada das polícias nos estados. Também houve ganhos com a incorporação de novas tecnologias para prevenção ao crime, especialmente aquelas relacionadas com a implementação dos Centros Integrados de Comando e Controle. Só em Porto Alegre, foram investidos R$ 70 milhões em equipamentos e softwares, que viabilizaram a instalação de um telão de 56 m² que permite acompanhar imagens captadas por 2,1 mil câmeras espalhadas pela capital gaúcha. Do ponto de vista prático, a implantação do CICC reforça a necessidade de atuação integrada entre as polícias civil e militar no monitoramento e implementação de iniciativas de prevenção ao crime e qualificação da investigação criminal.
Se o sucesso na garantia da circulação das pessoas em segurança e na apuração do desvio de ingressos é inquestionável, e o legado de infraestrutura e articulação entre as polícias demonstra a possibilidade concreta de obter ganhos na prevenção ao crime no curto e médio prazos, com a melhoria dos mecanismos de gestão nos estados e a maior capacidade de coordenação no âmbito federal, mais polêmica foi a prisão de ativistas na véspera da final da Copa, que supostamente estariam atuando na preparação de atos violentos no dia 13 de julho.
Valendo-se da previsão legal de prisão temporária por cinco dias para averiguações, no curso de inquérito policial, a Polícia Civil do Rio de Janeiro encaminhou ao Poder Judiciário o pedido da decretação da mesma para cerca de 60 ativistas que vinham sendo monitorados no período que antecedeu à realização da Copa. O pedido foi deferido pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, juntamente com dois mandados de busca e apreensão. Noticiou-se que cerca de 20 mandados foram cumpridos, e, segundo a Polícia, foram apreendidas máscaras de gás, gasolina, arma de choque, um revólver, artefato explosivo, sinalizador, drogas, computadores e aparelhos celulares. Vinte e cinco delegados e 80 agentes de diversas delegacias especializadas participaram da ação, que contou com o auxílio de um helicóptero.
Diversas entidades da sociedade civil, como a OAB, a Justiça Global e a Anistia Internacional, manifestaram-se contrariamente às prisões, que caracterizaram como ato de intimidação. De fato, é possível questionar o deferimento das prisões temporárias, a própria previsão legal desta modalidade de prisão é bastante criticada pela doutrina processual penal. O debate, no entanto, não pode ser feito de forma a reduzir o problema a uma atuação arbitrária da polícia e do Poder Judiciário, colocando em questão o próprio Estado Democrático de Direito. Desde que, a partir de junho de 2013, diversas manifestações legítimas no espaço público acabaram resultando em atos de quebra-quebra de estabelecimentos comerciais e bancários e de bens públicos, vinculados a uma estratégia política batizada como black bloc, as polícias estão colocadas diante de um grande desafio. Trata-se de garantir a livre manifestação democrática, seja qual for a bandeira levantada, mas, ao mesmo tempo, preservar a integridade física e patrimonial de manifestantes e demais cidadãos, e a responsabilização criminal dos envolvidos em atos que extrapolam a livre manifestação de opinião.
Desde então, em muitas situações houve excesso de violência por parte das polícias, em vários estados. Em outras, os atos de depredação e violência ocorreram sem que as polícias tenham conseguido atuar de forma preventiva ou repressiva. Desta vez, a polícia atuou de forma direcionada, levantou dados e fundamentou o pedido de prisão temporária, acatado pelo judiciário, e frente ao questionamento da abusividade das prisões, apresentou como resultado o esvaziamento dos atos previstos para a final da Copa.
Muito ainda será argumentado a respeito, contra e a favor da ação praticada pela polícia, com aval do Poder Judiciário. Estamos de fato em um momento no Brasil em que mais do que nunca se coloca ao poder público o desafio de garantir o direito democrático a manifestações de qualquer espécie, de grupos mais ou menos representativos, e a garantia dos direitos destes e daqueles que divergem ou preferem se manifestar de outra forma. O amadurecimento da democracia brasileira vai depender da capacidade de qualificar a atuação das polícias, garantir a legalidade da atuação das mesmas, e estabelecer limites claros e efetivos frente aos excessos que esvaziam os movimentos e reforçam os setores mais conservadores do aparato repressivo, para os quais a solução dos conflitos sociais deve ser conduzida na ponta do cassetete e pela névoa produzida pelas bombas de gás. Outros caminhos são possíveis para a administração dos conflitos na sociedade brasileira, e de desbravá-los depende o avanço e a consolidação de um efetivo Estado Democrático de Direito.