Segurança Pública em Democracia: hora de retomar a agenda das reformas
10 de julho de 2014 - 10:02
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Pesquisas recentes dão conta de que a questão da segurança pública é apontada como a principal preocupação para um em cada quatro brasileiros. A percepção social de que a criminalidade aumenta, e de que as instituições responsáveis pela garantia da segurança pública não estão em condições de enfrentar o desafio, é generalizada, colocando em questão os esforços realizados pelos governos, pelas polícias e pelo poder judiciário.
A dimensão subjetiva nem sempre corresponde ao que de fato acontece no âmbito das relações sociais. Não é o caso, no entanto, da questão da violência e da criminalidade no Brasil. Dados recentes apontam que, no ano de 2012, mais de 56.000 pessoas foram mortas de forma intencional, aumentando as já elevadas taxas de homicídio e estabelecendo um triste recorde. Somando os homicídios aos roubos, lesões e crimes sexuais, é possível compreender os motivos da sensação de insegurança que assombra os brasileiros, especialmente nas classes populares, onde se concentram as vítimas cotidianas da violência e do crime.
Quando os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, no pós-ditadura, elaboraram nossa Carta Magna, afirmaram o desejo de um Estado de bem estar social, arrolando direitos civis, políticos e sociais e apontando os caminhos institucionais para a sua concretização. No capítulo sobre a segurança pública, no entanto, não houve ousadia e criatividade para avançar em relação ao legado do período militar, ficando mantidas as mesmas estruturas policiais e a mesma divisão de atribuições, que já se demonstravam inadequadas para a garantia do direito à segurança. Com relação às polícias, o art. 144 da Constituição Federal referendou a divisão do ciclo de policiamento, dando às polícias civis as atribuições relacionadas com a investigação criminal, e às polícias militares, o policiamento ostensivo. Somada à divisão interna das estruturas policiais pelo sistema de dupla entrada, que separa oficiais e praças e delegados e agentes, à falta de mecanismos efetivos de controle interno e externo da atividade policial, e à não responsabilização de policiais que praticaram tortura no período militar, estes limites estruturais têm cobrado um preço alto, dificultando as necessárias mudanças no sentido da melhoria da taxa de esclarecimento de crimes como o homicídio e a redução dos níveis de violência abusiva praticada pela polícia.
Os avanços ocorridos na última década foram significativos, e dentre eles merecem destaque o protagonismo maior do governo federal na área, elaborando planos e induzindo a sua implementação pelos estados, e a participação maior dos municípios na implementação de políticas de prevenção ao delito no âmbito local. Também houve aumento do investimento em formação policial, com a constituição da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública, a criação do SINESP – Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, garantindo uma maior transparência e abrangência na produção de dados no setor, e algumas inovações pontuais implementadas nos chamados territórios da paz, como os programas de Justiça Comunitária e de foco prioritário na disputa de adolescentes com o tráfico. Também foi dada visibilidade e prioridade à violência contra a mulher, com novas experiências importantes de implementação das medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha. Mas faltaram iniciativas mais efetivas para enfrentar a superlotação carcerária e apoiar o egresso do sistema penitenciário, dando margem ao domínio cada vez maior das facções criminais. E não se efetivou a redefinição de atribuições de União, estados e municípios, dificultando a consolidação de um Sistema Único de Segurança, para dar permanência e organicidade às inovações.
Como se vê, em que pese um conjunto de iniciativas importantes, muito ainda há por fazer. É preciso ter consciência de que a inação no campo da segurança pública, em um contexto de altas taxas de criminalidade, dá margem ao populismo punitivo, ao discurso fácil dos defensores da lei e da ordem e do endurecimento penal, que não reduz crimes mas rende votos. Para enfrentar esta disputa, e a politização crescente da questão criminal, é necessário afirmar um programa de reformas, tendo como norte a consolidação democrática. Qualificar a ação da polícia, ampliar o esclarecimento dos crimes contra a vida, garantir a presença do Estado e das políticas públicas nas periferias urbanas, repensar a política de drogas e fortalecer e legitimar os mecanismos institucionais de mediação de conflitos são algumas das metas a alcançar, e o caminho são as reformas cada vez mais inadiáveis. Em torno destas questões irá se definir a possibilidade de desprivatizar o direito à segurança e garantir a sua universalização no Brasil na próxima década.