Entrevista: “Desafio aos direitos humanos persiste”

10 de maio de 2013 - 16:29

César Barros Leal, uma das principais referências do tema direitos humanos, identifica avanços históricos no resguardo de direitos básicos no Brasil, mas ainda nota a continuidade de distorções sociais e econômicas graves entre unidades do país, como São Paulo e Maranhão.

“(É) Uma herança histórica que tem a ver, por exemplo, com as disparidades regionais, com a má distribuição de terra, com os condicionantes geográficos, com as secas periódicas, com o poder dos que se sentem donatários de capitanias”, acusa ele.

Na entrevista a seguir, César Barros Leal, que preside o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, com sede em Fortaleza (CE), e é mestre e doutor em Direito, historia a constituição dos direitos humanos básicos no Brasil e no mundo, como forma de convocar à ação: “Não é suficiente afirmar que as pessoas têm direitos fundamentais e enumerá-los exaustivamente. Já os sabemos de cor. É preciso retirar o caráter ainda burguês desses direitos e propiciar a liberdade como valor-condição da existência”.

Também avalia o crescimento da violência no país e se diz confiante com os resultados de alguns projetos sociais, como o das prisões comunitárias, conhecidas como APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Segundo o estudioso, é uma criação brasileira que está sendo levada a outros países, por causa dos bons resultados alcançados, com baixo custo. “A verdade é que no cárcere se castiga a pobreza, não o delito”, resume, para defender penas alternativas.

É assim: o respeito aos direitos humanos é a possibilidade de nos realizarmos completamente, com todo o nosso potencial, nesta vida que se apresenta agora, hoje.

Boa entrevista.

 

Jornalirismo — Para um começo de conversa, o senhor poderia dizer o que são, hoje, os direitos humanos e apresentar um breve histórico da discussão sobre o tema?

César Barros Leal — Mergulho no tempo e releio detidamente a Declaração francesa, de grande beleza literária e jurídica, que serviu de preâmbulo à Constituição da França de 1791 e reafirmou a existência de princípios imutáveis que haveriam de se impor a todos os povos, em todos os tempos. A Declaração proclamava, como direitos essenciais, imprescritíveis, a liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão. Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, ampliou, inspirada pelas constituições pioneiras do México de 1917 e de Weimar de 1919, as anteriores proclamações de direitos, indigitando (e aqui os elenco) não apenas os direitos tradicionais − civis (privados) e políticos (que ensejam uma participação do cidadão no governo, no poder público) − e que evoluíram com o correr do tempo, como os direitos de propriedade, de proteção contra a prisão arbitrária, de inviolabilidade do lar e da correspondência etc., e como também os direitos econômicos, sociais e culturais: o direito ao trabalho, à sindicalização, à greve, ao descanso e ao lazer, à educação, à participação na vida cultural, à seguridade social, à proteção contra o desemprego, à proteção especial da maternidade e à infância etc., direitos que se somam aos civis e políticos e os completam, posto que as duas categorias são interdependentes e indivisíveis.

Jornalirismo — Antonio Candido, o crítico literário, num texto chamado “O direito à literatura”, incluía a literatura como um direito humano básico e expressava uma visão de certo modo otimista sobre a situação e o respeito dos direitos humanos numa perspectiva histórica. Ele notava avanços, uma evolução do respeito às garantias mínimas do homem. O senhor acredita que evoluímos, como humanidade?

César Barros Leal — Sim. Evoluímos em muitas áreas, embora às vezes a passos demasiado lentos e com avanços e retrocessos. O desafio, sob todas as perspectivas, persiste. Tantos anos depois da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vemos, como Antonio Candido, que ainda falta muito para que logremos a concretude daquele ideário humanista. A Declaração assevera que todos os homens nascem livres e iguais em decência e direitos, que todos têm direito à vida, à liberdade e à segurança, que ninguém deve ser submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante, e que todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei e merecer seu amparo. Seu conteúdo, no entanto, não impregnou a consciência dos cidadãos e dos governantes. Não é suficiente afirmar que as pessoas têm direitos fundamentais e enumerá-los exaustivamente. Já os sabemos de cor. É preciso retirar o caráter ainda burguês desses direitos e propiciar, em consonância com a visão orteguiana [relativa ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de pensamentos como “O homem é o homem e a sua circunstância”], a liberdade como valor-condição da existência; é preciso conscientizar a todos quanto ao respeito aos direitos humanos, denunciando as violações ocorridas; é preciso reabilitar a isonomia, garantir a repartição dos bens, o acesso às necessidades básicas; é preciso impedir que apenas alguns usufruam desses direitos, enquanto a maioria, a dos dominados, vê-se privada de um mínimo de condições de sobrevivência e de respeitabilidade como seres humanos e cidadãos; é preciso alargar a oferta de empregos, moradia, assistência médica e educação; é preciso fortalecer a capacidade de atuação política, motivo pelo qual entendemos que essas questões (que agora nos ocupam) deveriam estender-se aos sindicatos, às associações de profissionais, às entidades representativas de classes etc. Como advertiu [o jurista] Dalmo Dallari, “se não forem dadas oportunidades iguais para todos, a proclamação constitucional de igualdade será apenas um formalismo hipócrita, mascarando uma desigualdade de fato”. Com outras palavras é o que assinalamos (junto com Antônio Augusto Cançado Trindade) na introdução ao número 12 da revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH), quando dissemos que Maritain [Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês de orientação católica] já nos ensinava que as declarações não são suficientes, sendo mister encontrar meios que façam respeitar os direitos humanos. Acrescentava o filósofo francês que não é mais possível perverter a função da linguagem, a serviço dos que nos roubam a fé na realização dos direitos fundamentais, desses direitos que os homens possuem por serem homens, que são inerentes à natureza humana. Se fizermos, enfim, algo substancial para diminuir este fosso, talvez possamos viver em um mundo melhor, com acatamento às garantias mínimas do ser humano. O texto de Antonio Candido nos remete, aliás, ao Fórum Permanente dos Direitos Humanos Prof. Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade, um evento que o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, sob minha presidência, realiza em Fortaleza há 15 anos, no qual muitas das questões trazidas aqui têm sido abordadas de modo recorrente. No mês de outubro deste ano teremos, por exemplo, uma palestra sobre literatura, humanismo e direitos humanos, a cargo do juiz federal Marcos Mairton da Silva.

Jornalirismo — De modo geral, qual é a situação dos direitos humanos hoje no Brasil? Há situações que se repetem em toda a parte, em todas as regiões? Há casos particulares, de acordo com a posição geográfica ou econômica?

César Barros Leal — Sabemos que desde 1824 todas as nossas Cartas Magnas contiveram declarações de direitos e garantias individuais. Pontes de Miranda [Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979), jurista brasileiro autor, entre outras, da obra Tratado de Direito Privado] acentuava, a esse propósito, que existe no Brasil, conquanto não inteiriça, uma tradição constitucional concernente às declarações de direitos e liberdades. A Constituição vigente contém um capítulo sobre direitos e garantias individuais, que o professor Afonso Arinos [jurista e político (1905-1990)] considerava “o mais perfeito da nossa história constitucional”. Lê-se no caput do artigo 153: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à segurança e à propriedade”. O artigo 153 especifica os principais direitos e garantias. Em outros artigos, destinados à ordem econômica e social e à família, educação e cultura, a Constituição afiança outros direitos que também são fundamentais: artigo 175 (fala da proteção à família), artigo 176 (fala de educação) e artigo 180 (fala do amparo à cultura). A catalogação não é restritiva, não se exaure na enumeração ou explicitação individualizada do texto constitucional, pois a especificação dos direitos e garantias expressos na Constituição Federal não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. A leitura reiterada desses artigos nos leva a refletir sobre a situação, no plano fático, dos direitos humanos no Brasil. Tomemos dois pontos: educação e desenvolvimento. Acerca da educação: definida como direito de todos e dever do Estado, esta deveria receber uma atenção maior dos governantes, federais e estaduais, de quem cabe reclamarmos a priorização da escola pública, a valorização da educação pré-escolar, a garantia de um ensino público de qualidade para a população e a fiscalização maior do ensino particular. Acerca do desenvolvimento: milhões de brasileiros, carentes de suas necessidades básicas, credores de uma imensa dívida social, estão a reclamar um desenvolvimento antropocêntrico que contribua para garantir seus direitos fundamentais, e reivindicam das autoridades que atendam às suas reivindicações que vão desde a saúde, a educação, o amparo à velhice, a defesa do consumidor, o emprego, até a proteção ao meio ambiente e o acesso à informação e ao avanço tecnológico. Nesse país-continente, infelizmente, existem realidades díspares, em que unidades federativas muito ricas, como São Paulo, convivem com estados como o Maranhão, com taxas alarmantes de pobreza. Uma herança histórica que tem a ver, por exemplo, com as disparidades regionais, com a má distribuição de terra, com os condicionantes geográficos, com as secas periódicas, com o poder dos que se sentem donatários de capitanias. Um legado que vigora no Nordeste (com uma população de 45,5 milhões de habitantes, produtora de apenas 16% do PIB brasileiro) em toda sua nudez e crueza.

Jornalirismo — O Brasil mostra índices econômicos positivos, que o colocam entre as grandes potências do planeta. Índices sociais, como de saúde e educação, ainda não mostram o mesmo desempenho. Mas não há uma relação imediata entre bom desempenho econômico e social? Uma população subnutrida, doente e ignorante tem poucas chances de competir. Como podemos, de uma vez por todas, vincular uma coisa à outra?

César Barros Leal — É certo. Os índices econômicos não evidenciam um desempenho equivalente no plano social. E enquanto isso não ocorrer, vamos patinar entre a proposta e a realidade, entre a ilusão (vendida politicamente, como uma falsa mercadoria) e os fatos reais. Uma população subnutrida, doente e ignorante, não tem acesso aos bens que a distinguem, em sua plenitude, como cidadã. Explico-me: não há falar em verdadeira cidadania sem o gozo dos direitos mais elementares; não há falar em cidadania para os que vivem abaixo da linha da pobreza; não há falar em cidadania para os que dormem debaixo de um viaduto. A exclusão social é um acinte, uma absurdidade que nos compete enfrentar com todas as armas. É inconcebível a convivência dos ideais democráticos com as brechas sociais, com as cifras perversas de analfabetismo, de falta ou insuficiência de educação formal, de desemprego (as imensas legiões de braços caídos, segundo Eduardo Galeano), de vulneração do meio ambiente e de criminalidade. A democracia está vinculada ao desenvolvimento humano e social, ao fortalecimento e à transparência das instituições públicas e a uma cultura de observância dos direitos humanos.

Jornalirismo — Sobre a violência no Brasil, também em alta. Na sua experiência, quais são os grandes motores dela? Como evitá-los? Com que recursos?

César Barros Leal — Sabemos que em nosso pobre país rico, inseguro e instável, a violência é uma das mais elevadas do mundo e superior aos índices oficiais, já que menos de 10% dos delitos cometidos são denunciados, e não conduzem necessariamente seus autores ao cárcere. Dita violência multifacética (que deita raízes em numerosos fatores que vão das desigualdades de renda, da exclusão social até as drogas), está em todas as partes, nas ruas, no trânsito, nos bancos, nos transportes públicos, nos estádios, em nosso próprio lar. A violência se manifesta nas balas perdidas, nos sequestros, nos assassinatos cada vez mais frequentes, nos conflitos no campo, nas mortes rotineiras na clausura. A violência, tão banalizada. Com efeito, o que nos incumbe é contê-la e reduzi-la a limites de tolerância. Para isso, entre outras coisas, temos de fomentar políticas públicas de prevenção e segurança (recursos sobram), sem cair na armadilha dos movimentos de lei e ordem que em definitivo não constituem, entre nós, um modelo a seguir. Mais: a violência não é apenas física, corporal, pois se traduz de igual modo na degradação, na deterioração da qualidade de vida em nossas cidades, na concentração da terra, na marginalização social, na pobreza absoluta, no desemprego, no subemprego, na precariedade dos serviços de saúde, na ausência de uma educação otimizada (lembro-me agora mesmo de Immanuel Kant [filósofo alemão (1724-1804), autor, entre outras obras, de Crítica da Razão Pura]: “Tão só pela educação pode o homem chegar a ser homem”), bem como no tráfico de mulheres para o lenocínio e na superlotação das prisões.

Jornalirismo — Especificamente no Nordeste, onde o senhor mora, a violência se disseminou, juntamente com a melhoria de alguns índices econômicos e sociais. Alagoas, por exemplo, é um dos líderes em homicídios no país. A Grande Recife é tradicionalmente um lugar violento. Qual é a situação específica do Nordeste do ponto de vista da proteção e violação dos direitos humanos? O que tem de herança histórica na matriz dessa violência?

César Barros Leal — As estatísticas revelam que algumas capitais do Nordeste, a exemplo de Recife, João Pessoa e Maceió, exibem altos índices de homicídio e outros delitos igualmente graves. São dados preocupantes que deixam transparecer uma realidade social que se reproduz historicamente e vai muito além da melhoria de índices econômicos e sociais. O Nordeste, sob muitos aspectos, continua apresentando desníveis, em relação a outras áreas mais desenvolvidas, comprometendo o alcance, por parte de amplos segmentos de sua população, dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Jornalirismo — Há pessoas, não poucas, talvez com razões até válidas, que se posicionam contra a defesa de direitos de gente em situação marginal e de exceção, como a dos presidiários. Aquele discurso de que “só tem direitos humanos para bandido”. Como poderíamos mostrar a essas pessoas que todos têm os mesmos direitos? Que a luta talvez seja única?

César Barros Leal — Essas pessoas refletem um profundo preconceito que subsiste quanto aos marginalizadas, aos excluídos, entre os quais estão os presidiários. Sua visão dos direitos humanos em geral é distorcida e deplorável. Muitos chegam a personalizá-los. Seriam eles, os tais direitos humanos, os responsáveis pela defesa dos bandidos. O mais surpreendente é que esse discurso é esgrimido nas mais diferentes classes sociais, o que apenas confirma a grandeza do desafio, em termos de educação em direitos humanos. Foi nesse sentido que criamos o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, uma sociedade civil, sem fins lucrativos, cuja finalidade é desenvolver o ensino e a pesquisa em direitos humanos, assim como garantir sua promoção. A educação em direitos humanos é necessária para esclarecer essas pessoas.

Jornalirismo — Tempos atrás, no final da década de 1990, falava-se muito em penas alternativas como modo de corrigir o sistema prisional e melhorar o homem. Essa discussão avançou? Há algum outro caminho, no universo do direito, para a recuperação de presos, por exemplo?

César Barros Leal — Em livro publicado pela Editora Juruá, sob o título A Execução Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos: Viagem pelos Caminhos da Dor, aduzimos que as alternativas penais, “destinadas aos autores de fatos delituosos de pequena entidade, além de favorecerem a reinserção social do condenado (na medida em que não o apartam do trabalho, da família e do grupo social ao qual pertence), são muito menos onerosas do que as penas de privação de liberdade. Nos Estados Unidos, enquanto o custo médio anual de um preso é de US$ 25 mil, um prestador de serviços representa um dispêndio de menos de US$ 2 mil; no Brasil, um preso no regime fechado custa em torno de R$ 1 mil e um prestador de serviços, no máximo, meio salário mínimo; na Costa Rica, o desembolso diário com um preso está entre US$ 15,00 e US$ 50,00 e para mantê-lo no serviço comunitário se gasta US$ 0,50. Estas penas estão sendo aplicadas em todo o mundo, com resultados bastante satisfatórios. No Japão, menos de 6% das penas aplicadas são de privação de liberdade. E na Alemanha, 80% das infrações se sancionam com multas ou restrições de direito”. Em nosso país, a experiência de penas alternativas, que acompanho há muitos anos, tem sido exitosa, principalmente após a criação das centrais e varas de execução de penas alternativas. No livro citado, agrego: “Os números confirmam o êxito de uma experiência que tende a crescer no Brasil e que se converteu num refúgio seguro, um oásis de acertos em meio ao desolado cenário da execução da pena, e que se conjuga às boas, mas escassas práticas de excelência na área da privação da liberdade”. Discorrer, por outro lado, sobre recuperação de presos nos transporta a outras reflexões. O professor Elías Carranza, diretor do ILANUD (Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente), sempre enfatizou, em seus escritos e conferências, os males do encerro, dando destaque à superpopulação, extremamente comum, em desacordo frontal com as Regras Mínimas das Nações Unidas e outros documentos internacionais. Na verdade, a superpopulação, com todo o cortejo de suas consequências negativas, repercute necessariamente na dimensão humana do cárcere. Não se esqueça, de mais a mais, do grave e recorrente problema das prisões sem sentença, uma aberração que fere frontalmente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, as Regras Mínimas e outros documentos internacionais que compõem o modelo penitenciário da ONU. Como declara o professor Elías Carranza, não estão formalmente condenados, porém estão cumprindo materialmente uma condenação. Dita prisão, que deveria ser excepcional, é uma regra em toda a América Latina e atinge sobretudo os pobres, com menos de 25 anos de idade, muitos deles autores de delitos de pequena monta, os quais ficam meses e anos atrás das grades à espera de julgamento. Já se disse que entram como aprendizes de ladrão e saem com diploma em contrabando, em narcotráfico, em corrupção. A verdade é que no cárcere se castiga a pobreza, não o delito. A prisão notoriamente quase nunca alcança os banqueiros, os políticos, os fraudadores de colarinho branco, os que têm recursos para contratar bons advogados que lhes assegure a liberdade, visto que a justiça, nas palavras de José Raúl Bedoya, “é uma fera faminta e discriminatória que morde o fraco, porém nem sequer arranha o poderoso” [no livro Infierno entre Rejas, Inferno entre Grades, Bedoya relata sua experiência como detento nas más condições das prisões da América Latina]. Neste contexto, já se converteu numa obviedade, num truísmo, afirmar que o cárcere, especialmente o superlotado, por força da subcultura que fomenta do contágio que gera graças à convivência compulsória e intensa, não educa ou reeduca, não readapta, não reabilita, não recupera; ao revés, é um estímulo, um convite à reincidência, especialmente porque não há como educar alguém para a liberdade fora da liberdade, num ambiente que integra a chamada geografia da dor, em instituições que, à sombra da lei, são verdadeiros cemitérios de todas as poesias. Para Sergio García Ramírez, ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “os cárceres são, de algum modo, o reflexo mais impressionante do que é uma sociedade e é deles, ironicamente, de que esperamos, como dramático contraste, alcançar o que a própria sociedade não soube dar em seu tempo a quem agora está recluso em seu interior”. Na mesma linha de ideias trafegava Augusto Thompson, em seu clássico livro A Questão Penitenciária, ao inferir que não há como transformar a prisão punitiva em prisão reformadora, até porque existe uma incongruência, uma incompossibilidade entre as metas formais de punição, prevenção e regeneração com as metas informais de vigilância e segurança. Associo-me a Cezar Roberto Bitencourt [jurista] que assevera que “só se concebe o esforço ressocializador como uma faculdade que se oferece ao delinquente para que, de forma espontânea, ajude a si próprio, no futuro, a levar uma vida sem cometer crimes. Esse entendimento configura aquilo que se convencionou chamar de tratamento ressocializador mínimo. Afasta-se definitivamente o denominado objetivo ressocializador máximo, que constitui uma invasão indevida na liberdade do indivíduo, o qual tem o direito de escolher seus próprios conceitos, suas ideologias, sua escala de valores”.

Jornalirismo — Continuam denúncias do envolvimento de forças de segurança (polícias) dos Estados em delitos, sequestros, homicídios etc. e mesmo de formação de esquadrões da morte. Também cresce o número de policiais mortos. Como se pode começar a mudar essa situação?

César Barros Leal — Essas denúncias continuarão a existir enquanto o governo não investir nas polícias, em sua formação, em sua depuração. É necessário um investimento considerável na infraestrutura da polícia, na compra de equipamentos e no aperfeiçoamento da inteligência e das corregedorias (com vistas a punir, por exemplo, os maus policiais, envolvidos no crime e em esquadrões da morte); um maior rigor na seleção e no treinamento dos policiais, cujos salários têm de ser compatíveis com a importância de suas funções e a eficiência, o profissionalismo e a confiabilidade que deles se exigem; a intensificação do combate à corrupção, a par do alargamento do esforço de depurar os corpos policiais contaminados por membros que confundem autoridade com autoritarismo, praticam arbitrariedades, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais, tornando-se bandidos e profanando seu uniforme organizado; o adestramento e profissionalização das forças policiais na investigação de crimes financeiros, uma vez que não se pode estereotipar a criminalidade e concentrar-se, numa visão reducionista, somente nos crimes tradicionais, nos assaltos, nos roubos, nos homicídios, nos estupros, nos sequestros; a integração das polícias civil e militar, com operações que envolvam as diferentes corporações, evitando atritos que comprometem a qualidade de seu desempenho. Enquanto não se fizer isso e muito mais (a relação com os presidiários está na ordem do dia, com determinações emanadas do cárcere para o trucidamento de agentes de segurança e seus familiares), haverá um número crescente de policiais feridos e mortos.

Jornalirismo — O senhor poderia citar uma ou duas práticas, no Brasil, que podem comprovar que uma política de direitos humanos generosa, efetiva tem impacto positivo sobre todos? Afinal, se não houver para todos, não haverá para nenhum, como dizia a música, não é?

César Barros Leal — No âmbito prisional, que comentávamos há pouco, existem experiências notáveis no Brasil, entre as quais citamos as prisões comunitárias (com um número reduzido de presos) mais conhecidas como APACs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados), uma inovação genuinamente brasileira que está servindo de modelo para dezenas de países, seja pela qualidade da assistência prestada (com cunho humanitário) ou por seus baixíssimos custos, seja pelos índices reduzidos de reincidência que ostentam. Sem fins de lucro, a gestão dessas pequenas prisões se sustenta nos seguintes princípios, definidos pelo advogado católico Mário Ottoboni, que fundou a primeira APAC, em 1972, em São José dos Campos (SP): a) matar o criminoso para salvar o homem que existe dentro dele; b) a disciplina rigorosa, porém com amor; c) a religião, com liberdade de culto, como viga mestra da emenda, enfocada na ética e envolvida numa rede de propostas (assim, é vital crer em Deus, ter uma religião, porém sem que se imponha uma crença específica, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; d) o recluso ajudando os demais reclusos; e) a assistência em todos os níveis (material, médica, jurídica, social e educacional) e orientação concomitante ao interno e sua família; f) o sistema progressivo de cumprimento da pena na mesma unidade, o que favorece o contato permanente do recluso com sua família e amigos ao longo de toda sua pena e estimula, por conseguinte, sua reintegração na sociedade (os números dão a medida do sucesso: 15% são a média dos egressos que voltam a cometer delitos, enquanto no sistema tradicional pode chegar a 80%). Para a APAC (sigla que também significa Amando o Próximo Amarás a Cristo), não existe a figura do delinquente irrecuperável; as pessoas são maiores do que sua culpa ou seu erro, isto é, maiores do que os danos que hajam cometido. No plano da aplicação da Justiça, cito o exemplo da Justiça Restaurativa, uma experiência antiga, que renasceu nos idos de 1974, no Canadá (a história de um grupo de jovens acusados de vandalismo contra algumas propriedades) e se consolidou nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia. Com efeito, a Justiça Restaurativa, que se assenta em alguns pontos básicos como o encontro, a participação, a reparação, a reintegração e a transformação, envolve um dilatado esforço de renovação, de vanguarda, com o fim de implantar um modo de aplicar a justiça fundamentado na ética da alteridade, no respeito aos direitos do sujeito passivo da equação criminal. Trata-se, como afirmei alhures, “de uma prática de justiça muito diferente dos padrões ordinários da justiça penal, que não se pretende contrapor ou substituir, a qual é de corte nitidamente dissuasório, retributivo-punitivo, baseada no excesso de formalismos, na estrita legalidade, e uma relação traumática, adversarial, por vezes hostil, marcada pelo distanciamento, cujos atores principais são estatais — polícia, promotor de justiça e juiz — já que o delito é visto como uma disconformidade autor-Estado, isto é, como uma ofensa contra o Estado (a presumida vítima), pondo-se acento na ruptura das leis, na violação do bem jurídico tutelado e na culpa do agente, num enfoque retroativo, com ênfase no passado”.

Jornalirismo — Fique à vontade para dar um recado final.

César Barros Leal — Tomo a liberdade de convidar os leitores a participarem, como alunos ou como observadores, do II Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos: Acesso à Justiça e Segurança Cidadã, que terá lugar em Fortaleza, no período de 6 a 17 de maio. Organizado pelo Instituto Brasileiro de Direitos Humanos e pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, através de seu Escritório Regional em Montevidéu, numa parceria com a Procuradoria Geral do Estado do Ceará e a Universidade de Fortaleza, será aberto com uma conferência magna do doutor Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça, e se encerrará com uma conferência do doutor Jorge Miranda. Ao longo de duas semanas, os participantes terão acesso a palestras, painéis, oficinas de trabalho, estudos de caso e visitas a instituições públicas e privadas que têm relação com a temática central. As inscrições prévias estão abertas até o dia 28 de fevereiro e poderão ser feitas pelo site do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (aqui) ou da Procuradoria Geral do Estado do Ceará (aqui). Há também o blog do curso, para mais informações, aqui).