O trabalho visa a dar a ver como traficantes de escravos do Ceará se transfiguraram em abolicionistas e passaram a tomar conta do movimento abolicionista, definindo até, inclusive, as formas em que a escravidão permanecerá de alguma forma na cultura, através do que se pode chamar de habitus senhorial. Trata-se de perceber como a escravidão sai paulatinamente do espaço público, ou seja, perde cada vez mais sua legitimidade nessa esfera, para tornar-se numa escravidão cada vez mais confinada na dimensão privada, travestida de trabalho livre. Após a abolição, nesse sentido, há uma ressignificação do espaço doméstico, de acordo com certa cultura escravocrata centrada na família, o que está de acordo com o habitus senhorial; o que transforma o cativo em trabalhador criado de servir, agregado - meros assessórios de família (?), na perspectiva dos dominantes. Nas últimas décadas do século XIX, sobretudo após a grande seca de 1877-79, surgiram associações abolicionistas; boa parte delas, contando, entre seus quadros de sócios, com a participação de antigos traficantes de escravos. Em paralelo, tornam-se recorrentes discursos sobre a necessidade de constranger ao serviço doméstico pobres vadios e ociosos que vagavam pela cidade. A polícia devia dar conta de ocupar compulsoriamente tais vadios, descompromissados do 'progresso' e aformoseamento da vida e do espaço urbanos. Em 1887, o mesmo chefe de polícia responsável pelo arrolamento da população de Fortaleza preparou um código de posturas para o serviço doméstico, criando a exigência de um livro de matrícula dos trabalhadores que pretendessem ingressar nessa profissão e, ainda, uma caderneta para os patrões registrarem sua visão acerca do criado ou criada contratado(a). Esses dois documentos constituem fontes essenciais para a história social do trabalho e dos pobres nesse contexto de abolição e de controle dos pobres no final do século XIX. O código de postura elaborado por Olímpio Manoel dos Santos Vital, em 1887, inspirou-se num projeto de regulação da mesma atividade apresentado à Câmara de Fortaleza, em 1881, e assinado por Joaquim da Cunha Freire, então presidente daquela instituição. Este era o final da seca de 1877-79, em que Cunha Freire lucrou bastante traficando escravos para o Sul. Paralelamente, presidia a Comissão de Emancipação da capital cearense e a Comissão de Socorros Públicos, para assistir os retirantes acometidos socialmente pela mesma intempérie. Findo tal período, pouquíssimos escravos restaram na Província. Diante do evidente, o espaço do trabalho público sofrerá mudanças em que a lógica senhorial não terá como se estabelecer plenamente. Daí a atenção que o serviço doméstico atrai no momento anterior à abolição. Isto é, o trabalho doméstico serve como espaço privilegiado para a continuidade de relações escravistas, mesmo no pós-abolição. Em suma, cuida-se de enxergar os traficantes se transfigurando em abolicionistas, no âmbito do discurso público, e neste trajeto estabelecendo o espaço doméstico como um espaço do habitus senhorial se configurando, para projetar a escravidão e o paternalismo, para além da abolição, no horizonte da história.