ST 08 - ACUMULAÇÃO VIA ESPOLIAÇÃO E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NAS REGIÕES DO BAIXO E MÉDIO JAGUARIBE – CEARÁ: UMA TRILHA TEÓRICA EM CONSTRUÇÃO

FRANCISCO ANTONIO DA SILVA

Co-autores: LÚCIA HELENA DE BRITO e ALAN ROBSON DA SILVA
Tipo de Apresentação: Oral

Resumo

As regiões do Baixo e Médio Jaguaribe, Estado do Ceará, passaram por um intenso processo de reestruturação espacial nos últimos 30 anos que tem afetado de forma prejudicial diversas comunidades camponesas e as populações pobres dos municípios onde se instalaram empresas do agronegócio, a partir da criação de uma infraestrutura propícia ao desenvolvimento das relações capitalistas no campo, baseada na instalação de projetos de infraestrutura hídrica e perímetros públicos de irrigação, financiados pelos governos federal e estadual, que tornaram essas regiões o modelo de agricultura capitalista no Estado do Ceará. Desde 2014 temos desenvolvido um trabalho de levantamento e catalogação da documentação sobre conflitos agrários (conflitos por terra e água), que resultou na criação do Banco de Dados das Lutas e Resistências à Política de Modernização Territorial no Vale do Jaguaribe - Ceará (DATALURE), disponível no site www.uece.br/datalure. Essa documentação está sendo analisada a partir da perspectiva do materialismo histórico, possibilitada pelas reflexões e estudos que estamos realizando no Grupo de Estudos Capitalismo e Teoria Crítica - CATE, ligado ao Curso de História da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, Campus da Universidade Estadual em Limoeiro do Norte. O processo de reordenamento espacial vem acompanhado da ampliação e acirramento dos conflitos por terra e água, em virtude das estratégias de acumulação do capital baseadas na expropriação e expulsão dos camponeses de seus locais de moradia e trabalho, assim como a contaminação das águas e dos solos pelo uso indiscriminado de agrotóxicos que já causou muitas vítimas fatais nos municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré. Nesse trabalho pretendemos apontar um caminho teórico que possibilite a compreensão mais profunda dos problemas socioambientais decorrentes da instalação dessa infraestrutura que visa o estabelecimento das condições necessárias para o desenvolvimento do agronegócio e ampliar a presença do capital no campo, através do incentivo ao hidronegócio, o que nos permite problematizar o modelo de desenvolvimento empreendido pelo Estado. Essa trilha teórica fundamenta-se nos estudos de David Harvey (2004 e 2005), Enrique Leff (2015) e Walter Benjamin (1987). Harvey (2004) nos ilumina com a tese da expansão geográfica e reorganização espacial como opções para a crise de sobreacululação do capital, o que exige "ajustes espaço-temporais", como os investimentos em infraestrutura promovidos pelos Estados Nacionais, exemplo do que vem ocorrendo nas regiões do Baixo e Médio Jaguaribe, no Ceará. David Harvey reatualiza a tese da acumulação primitiva de Marx afirmando que ela é um elemento "interno" do capitalismo e central para os processos de reprodução do capital, chamando-a de "acumulação por espoliação". Seguindo a descrição de Marx o autor observa "que a acumulação primitiva revela uma ampla categoria de processos. Estas incluem a mercantilização e privatização da terra e a expulsão forçada das populações camponesas; a conversão de diversas formas de direitos de propriedade em direitos de propriedade exclusivos; a supressão do direito aos bens comuns; a transformação da força de trabalho em mercadoria e a supressão de formas de produção e consumo alternativos, incluindo os recursos naturais; a monetarização das trocas e a arrecadação de impostos, particularmente da terra; o tráfico de escravos; e a usura, a dívida pública e, finalmente, o sistema de crédito" (HARVEY, 2004:109). Para Enrique Leff (2015), a crise ambiental é o resultado da crise da racionalidade moderna (formal, instrumental e institucional) que ordena a racionalidade econômica e jurídica e guiam os processos de produção, os regimes de propriedade e a justiça social. No entanto, as crises ambiental e da racionalidade moderna possibilitam a reflexão sobre uma nova ordem jurídica, econômica e social fundadas nos "novos direitos" que se relacionam com a sustentabilidade ecológica e a diversidade cultural. Esses "novos direitos" estão sendo gestados em resposta a uma problemática ambiental que se apresenta como uma "crise de civilização". Walter Benjamin (1987), em Sobre o Conceito de História, nos traz uma centelha de esperança ao vislumbrar a possibilidade da escrita de uma "história a contrapelo". Na perspectiva benjaminiana o historiador deve "pentear a história a contrapelo", trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos documentos, colocar possibilidades novas de diálogo entre presente e passado, pois do contrário agirá como o historicista, se identificará com o vencedor e participará de seu cortejo triunfante, pisando sobre os corpos dos vencidos estendidos ao chão (BENJAMIN, 1987:25). Essa história a contrapelo é possível, pois "nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história" (p. 223). Realizar uma explicação histórica nesta perspectiva revela a preocupação de subvertermos uma concepção de tempo e, portanto, de história linear, cíclica, homogênea e vazia, cujo futuro não é mais do que uma mera reprodução do presente desvencilhado das alternativas possíveis - a história dos sofrimentos, das frustações e das esperanças dos vencidos. Assim, o problema reside em partir de um "futuro concreto e de utopias realistas encontradas em pistas que são forjadas nas organizações, nos movimentos e nas lutas das classes populares e dos povos historicamente marginalizados" (FRIGOTTO, 2007:09), no sentido de dar uma nova face às esperanças frustradas dos vencidos. Em outras palavras, como a investigação das experiências e das esperanças frustradas das populações das regiões do baixo e médio Jaguaribe diante dos conflitos por água e terra resultantes do reordenamento espacial pode contribuir para a construção de uma narrativa que tenha nessas experiências, esperanças, frustrações e sofrimentos acumulados o seu fundamento. Nesse sentido, trata-se de compreender as transformações pelas quais passam essas regiões e suas populações à luz das alternativas soterradas nos escombros da história dos vencedores, ou como diria Walter Benjamin, uma "história a contrapelo", uma "história dos vencidos".